| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
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“Onde não cabe interpretação, até as máquinas podem sentenciar.” Por mais que o então senador Roberto Requião tivesse incluído essa frase em seu relatório da Lei de Abuso de Autoridade para justificar uma subjetividade total que colocaria uma verdadeira mordaça em policiais, procuradores e juízes, há alguma base de verdade aí. A Justiça não funciona à base de máquinas, mas de seres humanos; e eles são chamados a decidir, em um trabalho que exige, sim, um certo grau de interpretação, já que a lei está longe de dar conta de absolutamente todas as realidades.

Do Judiciário se espera que julgue as demandas apresentadas com celeridade, justiça e bom senso, em profunda sintonia com a Constituição – tanto com sua letra quanto com seu espírito, o que exige profundo conhecimento também das ideias e princípios que nortearam o constituinte –, mas isso não é tudo. Como afirmamos, nem toda situação encontrará resposta cristalina no texto legal, ou terá similaridade com casos anteriores já julgados; onde há espaço para interpretação e para mais de uma solução compatível com a Constituição, impõe-se a necessidade de estabelecer critérios claros, um padrão que será seguido no futuro diante de casos semelhantes. Por isso, é essencial que os tribunais sejam garantidores de segurança jurídica, sem reversões e reviravoltas que façam valer a máxima segundo a qual “no Brasil, até o passado é incerto”.

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As decisões relativas à Operação Lava Jato no Supremo mostram à perfeição como a desconstrução de atos juridicamente irretocáveis se transformou na prática usual da corte

Quando a Constituição, a lei, a jurisprudência, os princípios legais e a coisa julgada são ignorados, entra em ação o voluntarismo. Já não existe uma única Constituição, mas tantas Constituições quanto magistrados. Já não existe jurisprudência, mas apenas as convicções e as conveniências de cada julgador. E, no Brasil atual, poucas instituições têm representado esse caos judicial de forma tão intensa quanto aquela que deveria ser a principal guardiã da Carta Magna e da segurança jurídica, o Supremo Tribunal Federal.

Se reputamos como praticamente heroico um voto como o de Rosa Weber, que, sendo contrária à prisão após a condenação em segunda instância, se opôs à concessão de um habeas corpus que livraria Lula da cadeia em 2018, pois o entendimento vigente era o de que essa prisão estava respaldada pela jurisprudência do STF, é porque o que deveria ser normal tornou-se a exceção. E as decisões relativas à Operação Lava Jato no Supremo, embora estejam longe de ser as únicas que fazem do atual Supremo um promotor de insegurança jurídica, mostram à perfeição como a desconstrução de atos juridicamente irretocáveis se transformou na prática usual da corte.

Um caso emblemático é o da anulação de sentenças em processos envolvendo corréus delatores e delatados, sob a alegação de que estes últimos deveriam entregar as alegações finais depois daqueles, uma diferenciação que não existe no Código de Processo Penal, embora a lei também permita que um juiz alongue os prazos caso perceba que as alegações finais dos delatores trazem novidades das quais os delatados não tiveram como se defender antes. Sob o pretexto de resguardar a ampla defesa e o direito ao contraditório, o que é correto, os ministros fecharam os olhos para o fato de que, nos processos que lhes chegaram às mãos, não houve prejuízo concreto a nenhum réu delatado. Com isso, foram desfeitas condenações em que houve completo respeito tanto à legislação processual penal quanto aos direitos dos réus. Esta aberração não passou despercebida a alguns ministros, que ressaltaram a necessidade de se estabelecer uma modulação que balizasse a análise de casos semelhantes. Tal modulação, prometida desde setembro de 2019, jamais chegou a ser feita.

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Assim, não chega a ser surpresa completa que, com uma canetada, Edson Fachin tenha decidido que a 13.ª Vara Federal de Curitiba não tem competência para julgar os processos do ex-presidente Lula, ainda que essa competência tenha sido questionada e reafirmada inúmeras vezes na segunda, na terceira e na última instância – o próprio Supremo. Nem que, para isso, tenha alegado que os processos não tinham relação com a Petrobras, apesar de denúncias e sentenças deixarem clara a relação entre os crimes cometidos e a pilhagem na estatal petrolífera. Por mais complexas que sejam as questões ligadas à competência para se julgar determinados casos, ainda mais uma investigação com tantas ramificações quanto a Lava Jato, fato é que havia um entendimento unânime a respeito do papel da 13.ª Vara, longamente construído com a participação do próprio Supremo, e que foi simplesmente descartado por uma mudança de caráter totalmente voluntarista. Além disso, não escapa a nenhum leitor atento da decisão de Fachin que as argumentações apresentadas podiam perfeitamente ser usadas na hipótese inversa – imagine o leitor que, por exemplo, a maior parte dos processos da Lava Jato estivesse sendo conduzida em Brasília, e um ministro decidisse anulá-los e remetê-los à 13.ª Vara: ele poderia fazê-lo copiando quase que na íntegra a decisão de Fachin, o que apenas evidencia ainda mais seu caráter subjetivo, sem amparo na realidade dos fatos.

Por fim, há de se lembrar do escandaloso caso em que quatro ministros da Segunda Turma decidiram seguir adiante com o julgamento da suspeição de Sergio Moro, na última terça-feira. Pois aqui não se tratou de desafiar apenas a Constituição, a lei ou a jurisprudência, mas também a própria lógica. Afinal, se o processo do tríplex do Guarujá havia sido tornado nulo, mesmo que de forma ainda provisória, todos os recursos a ele relacionados teriam o mesmo destino, no que o jargão jurídico chama de “perda de objeto”. Ao criar um habeas corpus zumbificado, pois mantido vivo apesar de o processo principal ter sido eliminado, a Segunda Turma deixou de lado qualquer resquício de bom senso e respeito aos fatos para, como se depreendeu pela leitura do voto de Gilmar Mendes, insistir na perseguição aos protagonistas da Lava Jato.

A Lava Jato, como lembramos, é apenas o exemplo mais evidente, mas também em vários outros temas, como o papel do Estado, a liberdade econômica e assuntos morais, o Supremo vem exibindo uma desconsideração sistemática pela Constituição, pelas leis, pela jurisprudência e pelos fatos. Independentemente da intenção que move os ministros em seus votos e decisões, ainda que eles estejam sinceramente convictos do acerto de seus atos, o resultado desse padrão decisório é, ironicamente, o fim de qualquer outro padrão, pois já não há regras fixas a que todos devem se submeter, mas apenas a vontade dos ministros, isoladamente ou em colegiado. Tamanha inconstância, tamanha insegurança jurídica leva a um perigoso descrédito do Judiciário, e especialmente do Supremo. Se a instituição para a qual muitos brasileiros um dia olharam com esperança, como um porto seguro em meio ao lamaçal da corrupção do mensalão, já não desperta confiança, é porque seus membros – intencionalmente ou não, pouco importa – se deixaram levar por um voluntarismo que, no fim, é autodestrutivo.