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Editorial

A investida de Augusto Aras contra a Lava Jato

Augusto Aras
O procurador-geral da República, Augusto Aras (Foto: Lula Marques/Fotos Públicas)

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Os últimos dois anos viram uma escalada de investidas contra a Operação Lava Jato que agora parece próxima do paroxismo. Nesta última terça-feira, o Procurador Geral da República (PGR), Augusto Aras, demonstrou de maneira incontestável sua intenção de acabar com a força tarefa responsável pela maior investigação de crimes de corrupção da história. Numa conferência online da qual participavam advogados de investigados pela operação, o PGR se referiu ao que chamou de “caixa de segredos” dos procuradores. No mesmo tom, afirmou que era hora de “corrigir rumos” para que o “lavajatismo” não perdure.

É a primeira vez desde o início das investigações em 2014 que um PGR se refere à operação em termos tão parecidos com os utilizados pelos seus críticos mais ácidos. Infelizmente, diante das evidências materiais apresentadas, esse alinhamento acende um forte sinal de alerta. As declarações ocorreram poucos dias depois que a instância central do Ministério Público Federal obteve acesso aos dados das forças-tarefas de Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro, após um imbróglio que só se resolveu por interferência do Supremo Tribunal Federal (STF). Aras se referiu com tom de crítica ao fato de que a força tarefa coordenada por Deltan Dallagnol tenha hoje cerca de 350 terabytes referentes a 38 mil pessoas, dados “que ninguém sabe como foram escolhidos”. O volume dos dados é superior ao que está em posse de todo o MPF atualmente, que acumula 40 terabytes de informação em seus sistema único. Para completar, num tom exaltado, o PGR ainda utilizou palavras fortes como “bisbilhotice”, “chantagem” e “extorsão”.

A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) rebateu as acusações do PGR, classificando a crítica como “discurso destrutivo” que não contribui “em nada para o aperfeiçoamento do debate travado sobre a evolução do modelo [das forças-tarefas]”. A entidade ainda destacou que, até hoje, nenhuma irregularidade foi encontrada no trabalho dos investigadores, apesar de uma série de fiscalizações realizadas desde o seu início. Na mesma linha, o ex-ministro Sérgio Moro foi taxativo em afirmar que a operação “sempre foi transparente e teve suas decisões confirmadas pelos tribunais de segunda instância e também pelas Cortes superiores, como o STJ e o STF”.

Os protestos suscitados pelas declarações do PGR são mais do que justificados. As ilações feitas são graves e denotam uma leitura enviesada e preconceituosa de uma operação histórica, de grande envergadura e complexidade, que se transformou em símbolo de esperança na luta contra a corrupção para todo o país. Precisamente por essa natureza simbólica, o mínimo que se poderia esperar da pessoa que está à frente da instituição seria uma atitude de respeito pelos profissionais que levaram adiante algo dessa dimensão, até mesmo pelo poder emulador e inspirador que a Lava Jato tem sobre centenas de operadores do sistema de justiça criminal. Deltan Dallagnol e os procuradores envolvidos na Lava Jato devem ser exemplo de competência e seriedade para todo o MPF, não constante objeto de arguição, dúvida e desconfiança.

Se alguma ressalva eventualmente existisse ou mesmo se houvesse discordância por parte de Aras quanto a algum determinado método de atuação ou entendimento jurídico dos procuradores da força-tarefa, o normal e saudável para o país e para o MP teria sido a realização de reuniões de alinhamento e a definição de diretrizes para a instituição atuar daqui para diante. Jamais a crítica desbragada, carregada de insinuações graves e irresponsáveis, ou a atuação desrespeitosa e atrapalhada. E se suspeita fundada houvesse de irregularidades, com maioria de razão a cautela e a discrição se imporiam, até a obtenção de provas suficientes.

O tipo de declaração destrutiva que Aras vem fazendo desperta desconfiança sobre as intenções ocultas que as motivam. Afinal, o mero volume de dados coletados durante a investigação jamais poderia ser objeto de crítica por si mesmo, considerando o tempo e a abrangência dos trabalhos realizados até aqui. Atestam, ao contrário, a reconhecida produtividade da força-tarefa de Curitiba, que conseguiu se tornar exemplo de eficiência mundial, ainda que sem contar com a mesma celeridade nas instâncias superiores da Justiça brasileira, que pouco avançaram nas investigações dos denunciados pela Operação que detinham a prerrogativa de foro privilegiado. Não é só o volume de dados coletados o que impressiona nas investigações, mas também a quantidade de crimes descobertos, de diligências realizadas, de delações assinadas, de criminosos condenados e de dinheiro devolvido aos cofres públicos. Tudo isso tem sido motivo de orgulho constante para os brasileiros nos últimos anos, permitindo mudanças drásticas na forma como toda uma geração se relaciona com a política. Talvez um quadro comparativo demonstrasse realmente uma discrepância de produtividade da operação com o restante dos quadros do MPF. Porém, isso é motivo de vergonha da força-tarefa de Curitiba ou ensejo para que outros procuradores demonstrem resultados mais efetivos nas suas atividades cotidianas?

O comportamento do PGR parece denotar certa leviandade no tratamento do problema. Afinal, há que se perguntar se, diante de tamanho volume de dados coletados, Aras e sua equipe já teriam tido tempo de se debruçar sobre as informações ao ponto de falar com propriedade ao seu respeito. Sem nem ter ainda a posse de material acumulado ao longo de seis anos, já se pode falar com propriedade de “caixa de segredos”, “chantagem” e “extorsão”? O tom exaltado e a falta de conteúdo real nas afirmações proferidas pela autoridade mais alta do MPF confirmam mais uma indisposição prévia do que uma avaliação responsável de eventuais problemas nas investigações. Para quem não quer, qualquer desculpa serve. Afinal, já é amplamente conhecida a defesa de Aras e sua equipe sobre a centralização das investigações de corrupção debaixo da alçada de uma Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Unac).

Essa proposta tem se centrado na tese esdrúxula apresentada pelo PGR já antes de sua posse de que faltaria experiência e “cabeças brancas” na força-tarefa de Curitiba, o que teria suscitado “abusos”, que poderiam ter sido evitados pela presença de procuradores mais experientes. Desde então, a opinião pública permanece questionando: que abusos foram esses, que não foram objeto de condenação de qualquer instância do Judiciário? Eventuais problemas ocorridos durante as investigações não se deveram à falta de experiência, mas à complexidade dos problemas envolvidos. A Lava Jato lidou não só com situações inusitadas, mas também com dispositivos muito recentes no nosso ordenamento jurídico, como é o caso das delações premiadas. Nada impede que regulamentações e mecanismos de freios e contrapesos para seu uso sejam pensados a posteriori. Não se pode esquecer, porém, da seriedade com que o tema sempre foi tratado pelas autoridades envolvidas. Na verdade, o acúmulo de aprendizado institucional até aqui desperta na opinião pública a sensação de que Deltan Dallagnol e os demais procuradores, policiais e juízes envolvidos na investigação tem mais a ensinar às instâncias superiores da PGR do que o contrário.

Nesse sentido, não custa lembrar que o caso mais polêmico envolvendo procuradores federais ligados a investigações de corrupção desde o início da Lava Jato tenha vindo justamente da PGR. Ou não foi isso o que aconteceu com o ex-procurador Marcelo Miller, acusado de ter usado o cargo na PGR para favorecer os irmãos Batista na delação da JBS? Até hoje, nenhuma acusação parecida sequer pairou sobre os envolvidos na força-tarefa de Curitiba. Isso nos remete diretamente aos planos de centralização ora em curso. Num modelo assim, quem impediria que situações análogas ocorressem no futuro? É sempre bom lembrar que o cargo de PGR passa por uma escolha política do Presidente da República, ainda que tenha que ser sancionada pelo Congresso. Isso não acontece com a atuação de procuradores de carreira, que tem a liberdade total para investigar políticos dos quais não dependem diretamente para ocuparem sua função. A autonomia dos procuradores serve para dar a liberdade necessária ao seu trabalho num país com mais de 200 milhões de habitantes, com contextos, atores e ambientes institucionais diferentes. Num modelo centralizado, ocorreria simplesmente a eliminação de alguns mecanismos de freios e contrapesos que até agora demonstraram sua importância, não incapacidade, para fazer com que as investigações ocorram dentro da lei.

Finalmente, caberia perguntar, na linha de insinuações feitas por críticos da investigação que defendem a extinção do produtivo modelo de força-tarefa e sua centralização, em qual sentido os dados sigilosos e a defesa dos direitos das pessoas poderiam estar mais garantidos na mão de uma equipe centralizada em Brasília? Afinal, é interessante que os mesmos que apontam supostos problemas com a quantidade de dados levantados pela operação em 6 anos de existência não estejam assustados ante a perspectiva que a equipe do PGR agora terá acesso aos mesmos dados sigilosos, das mesmas pessoas, e das mesmas empresas. A criação de mais mecanismos de controle social e transparência para a atuação das autoridades policiais é quase sempre bem-vinda no Estado Democrático de Direito. Porém, tentativas de eliminação de organismos intermediários para a centralização de poder, sob quaisquer justificativas que seja, costumam fazer parte do rol de investidas revolucionárias de diferentes colorações ideológicas. O resultado final desse tipo de processo costuma ser mais poder na mão de poucos, mais segredo, menos controle da sociedade e menos transparência. É mais Brasília, menos Brasil, num sentido manifestamente contrário aos auspícios de descentralização presentes hoje na sociedade brasileira.

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