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Editorial

A liberdade de expressão no inquérito dos atos antidemocráticos

alexandre de moraes
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). (Foto: Rosinei Coutinho/STF)

Na decisão que autorizou as operações do último dia 27, que investigam a realização de atos antidemocráticos, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou que as postagens de parlamentares sobre os eventos não fossem apagadas. Hoje, a Procuradoria Geral da República (PGR) listou algumas delas, particularmente as que foram postadas pelos deputados Júnior Amaral, Daniel Silveira, Carla Zambelli e Alê Silva, e pelo senador Arolde Oliveira. Nas mensagens, alusões ao fechamento do Congresso e do STF, intervenção militar e ao AI-5. O material, carregado de apelos autoritários e ultimatos, compõe parte da investigação em curso. Mas em que medida violaram ou não as leis brasileiras e os amplos espaços de liberdade de expressão que um Estado de Direito oferece? A questão é da máxima relevância para um país que pretende batalhar por manter-se em solo democrático.

Só para relembrar, o estopim para a abertura do inquérito dos atos antidemocráticos veio no dia 19 de abril, Dia do Exército, quando milhares de pessoas saíram às ruas para demonstrar apoio ao governo Jair Bolsonaro. Parte delas estendeu faixas pedindo intervenção militar e o retorno do AI-5. Eventos análogos se repetiram no dia 3 de maio e depois disso, com manifestações menores. De acordo com o vice-procurador da República, responsável pela condução das investigações, as ações miram pessoas envolvidas na “execução de ações contra a ordem constitucional e o Estado Democrático e provocação das Forças Armadas ao descumprimento de sua missão constitucional”.

Ainda que as investigações se baseiem em dispositivos previstos no ordenamento jurídico brasileiro, é necessário questionar se não estaríamos diante de um precedente perigoso para a própria vida política nacional, ainda que em alegada defesa da democracia e do Estado Democrático de Direito. No caso do inquérito em tela, os procuradores baseiam as investigações na chamada Lei de Segurança Nacional (LSN). O dispositivo, herança do regime militar, foi constantemente criticado por vários juristas como entulho autoritário, que poderia abrir precedentes perigosos para perseguição política. Como avaliá-lo?

Na verdade, a formulação de muitos dos crimes ali previstos é bastante bem feita e necessária, salvaguardando importantes bens numa democracia. Há, porém, o aspecto simbólico da lei, o que é especialmente relevante quando estamos no campo da liberdade de expressão. E a lei incrimina certas condutas nesse terreno. De fato, o art. 22 da lei estabelece como crime: “Fazer, em público, propaganda: I - de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social; II - de discriminação racial, de luta pela violência entre as classes sociais, de perseguição religiosa; III - de guerra; IV - de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.”

A liberdade de expressão não é absoluta, afirma sempre a melhor doutrina em todos os países civilizados e toda a tradição da nossa jurisprudência. Há inúmeros bens jurídicos, isto é, valores relevantes, previstos na Constituição, que podem justificar uma por assim dizer compressão da liberdade de expressão numa democracia. Entram aí bens como a honra, a privacidade, a igual dignidade de todos os homens (proibição do racismo), o respeito à lei penal (proibição da incitação à prática de crimes), etc. Isso é assim em boa parte dos países livres. Requer-se sempre uma específica e pontual previsão legal.

São poucas, no entanto, as democracias que proíbem diretamente, de forma especial e específica, as expressões contra a segurança nacional. Nesse sentido, causa certo espanto a facilidade com que o referido art. 22 da LSN vem sendo brandido por importantes vozes da sociedade brasileira. De qualquer forma, não é que propriamente a existência dessa previsão legal afronte a democracia, mas sim que tem o potencial de fazê-lo e o mínimo que se requer é uma especial cautela quando se torna necessário recorrer a esse dispositivo. De que cautela estamos falando?

Antes de tudo, a cautela de uma precisa e adequada interpretação de seus dispositivos, em particular do já citado art. 22, ajuda especialmente a entender o que ele não proíbe. Cidadãos estão perfeitamente autorizados no ordenamento jurídico brasileiro a protestar contra decisões do STF, a criticar seus ministros, mesmo com palavras severas, como, por exemplo, a de considerá-los um estorvo para a democracia ou a de compará-los a um vírus; podem igualmente defender o impeachment desses mesmos ministros ou a mudança do critério de nomeação deles; podem ainda batalhar pela realização de uma nova Assembleia Constituinte. Nada disso é ilícito. Até mesmo é lícita a absurda interpretação do art. 142 da Constituição como conferindo às forças armadas um poder de ser o árbitro final em crises institucionais pode ser defendida. Como diz a própria LSN, em seu art. 22, § 3º, “Não constitui propaganda criminosa a exposição, a crítica ou o debate de quaisquer doutrinas”. Esse texto, aliás, vai na esteira de toda a tradição democrática brasileira que não considera criminosa a mera exposição de idéia, salvo pouquíssimos casos (como os de preconceito racial), ou a discussão sobre a oportunidade ou não de uma lei e/ou de sua mudança (a manifestação pela legalização da maconha, por exemplo, é lícita, mas não a apologia ou incitação ao uso dela).

No caso das mensagens de parlamentares que vieram a público nestes dias, é difícil ver na maioria delas algo que vá além de opiniões bastante criticáveis do ponto de vista político e moral, mas de forma alguma criminosas. Considerando ainda a imunidade material ou substantiva dos parlamentares, é surpreendente que algumas dessas mensagens tenham sido apresentadas na mídia como violadoras da LSN. Assim, por exemplo, a afirmação do senador Arolde de Oliveira em redes sociais de que “Os governadores do Rio e de São Paulo se elegeram nas costas de Jair Bolsonaro e agora são seus maiores detratores e inimigos do Brasil. Querem o caos, mas, antes que isso ocorra, as Forças Armadas entrarão em cena para Garantia da Lei e da Ordem, segundo a Constituição Federal” não parece representar nada mais do que uma convicção, ainda que mal fundada. Mesmo a mensagem “AI-5 e intervenção militar é o grito de desespero de um povo que quer ver o seu presidente, eleito democraticamente, governar sem as amarras de dois congressistas”, de Alê Silva, em 19 de abril, não caracteriza propaganda ou incitação. É antes uma explicação de por que o povo, na visão dele, defende o AI-5 e a intervenção militar. Pouco importa quão absurdas consideremos essas análises ou mensagens; o que não se pode é pender para uma caça às bruxas em momentos de polarização política.

Há expressões que, sim, são abusivas. Mas não é difícil identificá-las. A injúria, pura e simples (xingamentos aos ministros), a incitação à derrubada do STF ou ao golpe militar, etc... Surpreende, portanto, que manifestações de parlamentares, que não se encaixam neste quadrante, sendo totalmente legais, ainda que reprováveis moral ou politicamente, estejam sendo alvo de inquérito.

Falávamos em cautela na interpretação da lei. Além da compreensão correta e precisa do que está proibido ou não, em tese, é fundamental considerar as circunstâncias em que tudo está sendo gestado. Nesse sentido, é preciso considerar que as manifestações ocorreram e têm ocorrido num momento de grave tensão institucional, marcado por características sui generis. Existe uma crise ainda não resolvida de enfrentamento entre os Poderes, com Jair Bolsonaro acusando reiteradamente o STF de interferências inconstitucionais. Em meio à disputa, é preciso considerar a tensão provocada pelo chamado inquérito das fake news, conduzido pelo próprio STF, que nos últimos meses direcionou seu foco para apoiadores do Presidente. Para piorar a situação, a esfera pública brasileira viu surgir, como mencionado, esse debate desnecessário sobre a natureza do Artigo 142, que permitiria, para alguns, sem nenhum fundamento, uma ação das Forças Armadas como Poder Moderador em caso de impasse entre os Poderes ou de grave ameaça à Lei e à Ordem. A interpretação equivocada, compartilhada por Bolsonaro em suas redes sociais, chegou a ser defendida pelo Procurador Geral da República Augusto Aras e também encontrou eco em diversas manifestações de militares da reserva. Ainda que Aras tivesse se manifestado em nota se dizendo mal interpretado, ajudou a esquentar ainda mais os ânimos.

Foi provavelmente inspirado nesse ambiente que muitos manifestantes se viram autorizados a apelar para soluções inconstitucionais, e até “antidemocráticas”, nos diversos atos ocorridos pelo país. É preciso ter isso em mente para que se entenda o teor ou pano de fundo por trás de muitas expressões mais exaltadas que surgiram, as quais não definem essencialmente todas as manifestações em tela, compostas por uma miríade de cidadãos que expressavam sua insatisfação com o STF ou com a presente crise de maneiras variadas.

Ainda que muitos cartazes e defesas explícitas de uma intervenção militar ou de fechamento do STF ostentados pelos manifestantes possam ser enquadrados com alguma liberalidade na LSN, a classificação em si mesma dos atos como “antidemocráticos” comporta o risco de criminalização de milhares de pessoas. Além de que é preciso considerar que as mensagens em manifestações carregam uma polissemia própria do discurso, ainda mais aquele que se expressa em cartazes e faixas, escritos por pessoas muitas vezes de baixa formação e com pouca capacidade de expressão, é preciso muita cautela para não tomar a parte pelo todo num momento delicado como o que o país está passando. Cumpre observar que a presença de pessoas fazendo demandas autoritárias ou revolucionárias em manifestações de rua não é apanágio dos apoiadores do Presidente. Nos recentes atos da oposição ou de grupos autointitulados antifascistas, imagens de cartazes pedindo a “ditadura do proletariado” figuravam em meio a uma massa que fazia reivindicações absolutamente legítimas. Da mesma forma, pequenos grupos de vândalos infiltrados nesses atos protagonizaram cenas de destruição de patrimônio, agressão contra policiais e cidadãos, além do incêndio de bandeiras nacionais, crime previsto pela Lei 5.700, de 1971. Ainda que a minoria de pessoas mal intencionadas em todas essas manifestações possa e deva ser processada pelo sistema de justiça criminal, cumpre questionar se sua simples presença nesses eventos justifica grandes operações policiais para incriminar os organizadores do evento como se este, em si mesmo, comportasse intenções francamente criminosas.

A aplicação da Lei pode e deve ser utilizada para coibir atos de apologia ao crime e incitação da violência em casos graves, com forte ligação com outras condutas que afrontem os bens protegidos pela lei. Quando ela se manifesta em momentos de grave tensão institucional da maneira correta, opera como baliza para o processo civilizador da política em si mesma. Porém, a seletividade na sua aplicação e principalmente o rigor com que certos dispositivos são empregados, principalmente quando se trata de legislações controversas como a LSN, podem produzir mais questionamentos sobre a legitimidade do atual ordenamento jurídico brasileiro, num momento delicado como esse da nossa história, do que benefícios. A democracia não pode ser um pacto suicida, mas tampouco deve ser utilizada como instrumento de tirania de alguns, contra quem quer que seja.

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