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Editorial

A liberdade profissional contra a fúria regulatória

Projeto que regulamentava a profissão de historiador foi vetado por Jair Bolsonaro. (Foto: David Iliff/Wikimedia Commons)

Quando um governo se compromete com a liberdade econômica, ele se empenha em dar condições para que os empreendedores possam empenhar seus recursos, gerando emprego e renda e contribuindo com o bem comum ao oferecer serviços e produtos com o mínimo de interferência estatal, mas não para por aí. Um desdobramento importante da liberdade econômica é a liberdade profissional: o direito de cada pessoa a usar seus talentos e capacidades da forma que melhor lhe convier, na atividade que julgar mais adequada para colaborar com a sociedade e prover o sustento próprio e da família, também com o mínimo de restrições a não ser aquelas que buscam garantir a defesa de determinados bens, como a vida ou a liberdade.

O constituinte compreendeu essa realidade quando previu, entre os direitos fundamentais previstos no artigo 5.º da Carta Magna, que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”; ou quando, no artigo 1.º, inclui “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” como fundamentos da República Federativa do Brasil; ou, ainda, quando afirma, no artigo 170, que a ordem econômica é “fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”.

Existe um verdadeiro furor regulatório de carreiras em curso no Congresso Nacional há muitos anos

Por tudo isso é muito bem-vindo o veto integral do presidente Jair Bolsonaro ao Projeto de Lei 4.699/12, que pretendia regulamentar a profissão de historiador, reservando-a apenas aos portadores de diploma de graduação, mestrado ou doutorado em História, a mestres e doutores em outras áreas com linhas de pesquisa dedicadas à história, ou demais profissionais que pudessem comprovar o exercício da profissão de historiador por cinco anos ou mais. Bolsonaro invocou não só o artigo 5.º, XIII da Constituição, mas também o inciso IX do mesmo artigo, segundo o qual “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, e que também se aplica à atividade do historiador.

Existe um verdadeiro furor regulatório de carreiras em curso no Congresso Nacional há muitos anos. A ex-presidente Dilma Rousseff vetou, com os mesmos argumentos, projetos de lei que regulamentavam profissões como garçom, DJ, decorador, designer e catador de materiais recicláveis. Antes de vetar o projeto sobre historiadores, Bolsonaro já tinha vetado a regulamentação da profissão de cuidador. Seguem tramitando nas duas casas do Legislativo federal projetos similares para as profissões de fotógrafo (PLC 64/14), analista de sistemas, desenvolvedor e várias outras carreiras na área de tecnologia da informação (PLS 317/17), instrutor de pilates (PL 6.469/19), tradutor e intérprete de Libras (PL 9.382/17) e gestor ambiental (PLC 3.515/19), entre muitos outros. Até mesmo os YouTubers têm regulamentação tramitando na Câmara, o PL 10.938/18. Esse profissional, segundo o autor do projeto, Eduardo da Fonte (PP-PE), “influencia a formação de opinião de parte significativa da sociedade, em especial os mais jovens”, mas “trabalha, na maioria das vezes, autonomamente ou exposto a contratos de trabalho sem as proteções legais previstas” (motivo pelo qual o projeto quer fixar em seis horas diárias e 30 horas semanais a jornada do YouTuber) e “também acaba sofrendo discriminação de outras categorias artísticas”.

Nem toda regulamentação é nociva, obviamente. Quando estão em jogo a vida, a saúde, a liberdade ou a integridade física das pessoas, é preciso estabelecer critérios rígidos, comprovando-se que o profissional passou pelo processo de instrução que o capacita a trabalhar na área. É por isso que o diploma é necessário, por exemplo, nas carreiras ligadas à saúde e nas engenharias. Mas a maior parte dos projetos que tramitam no Congresso, é preciso dizer claramente, não salvaguarda nenhum desses bens, chamados “indisponíveis”; trata-se unicamente de estabelecer uma reserva de mercado, condicionando o exercício de determinada profissão à posse de um certificado ou diploma que passa a ter muito mais importância que as reais qualidades e aptidões do indivíduo, os melhores critérios para garantir o êxito profissional na maioria absoluta das carreiras que se pretende regulamentar – curiosamente, o caso dos historiadores foi justamente o exemplo escolhido para ilustrar o texto em que a Gazeta do Povo expôs sua convicção sobre a liberdade profissional, mostrando quão absurdo seria limitar a carreira aos que passaram por um curso acadêmico de História.

Para todas aquelas carreiras que não lidam com os bens que descrevemos acima e que justificam uma regulamentação criteriosa, a avaliação do mercado é o melhor caminho. Não se pretende, aqui, menosprezar o valor de faculdades e escolas profissionalizantes – diplomas e certificados atestam que um indivíduo passou por uma formação que lhe permite exercer certa profissão; boas instituições são reconhecidas pelo mercado e ajudam seus alunos a conquistar posições de trabalho. Nada impede que uma empresa ou pessoa opte por contratar apenas quem tenha recebido esse tipo de qualificação. Isso, no entanto, é diferente de usar a força da lei para impedir outras pessoas de disputar esse mercado só porque elas não fizeram os mesmos cursos. A fúria regulatória amarra talentos e revela desconfiança a respeito das capacidades dos trabalhadores; a liberdade permite que cada um dê o melhor de si e busque desenvolver ao máximo suas qualidades.

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