À medida que se desenrola a audiência pública para debater a ADPF 442, que pretende legalizar o aborto no Brasil até a 12.ª semana de gestação, fica claro que o movimento abortista no Brasil parece finalmente ter achado o caminho para implantar a prática no país: o ativismo judicial dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Ainda não há data para um eventual julgamento da ação – depois da audiência, que termina nesta segunda-feira, a relatora Rosa Weber ainda precisará elaborar seu voto e liberar a ação para julgamento, que entra ou não na pauta por decisão do presidente da corte. Mas, quando finalmente os 11 ministros decidirem se a legislação brasileira sobre o tema respeita ou não a Constituição, estaremos diante da consagração de uma estratégia que começou discreta, mas que cresceu com o sinal verde vindo de dentro do próprio Supremo.
Como bem se sabe, o Código Penal trata o aborto como crime, mas sem puni-lo nos casos de gravidez resultante de estupro e risco de vida para a mãe. Em 1988, a Constituição Federal consagrou, entre os fundamentos da República Federativa do Brasil, a “dignidade da pessoa humana”, em seu artigo 1.º. Mais adiante, no artigo 5.º, reconhece “a inviolabilidade do direito à vida”. Os defensores do aborto, tradicionalmente, tentaram mudar a lei brasileira no Congresso. Um dos mais antigos projetos de lei sobre o tema é o 1.135/1991, arquivado e ressuscitado várias vezes até o arquivamento final no início de 2012. Ele era ainda mais radical que a ADPF 442, pois pretendia simplesmente revogar os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto, tornando-o legal em qualquer momento da gestação. Depois dele, vieram vários outros projetos, tentando liberar o aborto em casos específicos, todos sem sucesso – até mesmo uma reforma do Código Penal foi cogitada. O máximo que a militância conseguiu no Legislativo foi a inclusão de um “cavalo de Troia” abortista no PLC 3/2013, aprovado e sancionado por Dilma Rousseff. Um outro projeto, o 5.069/2013, corrige os trechos problemáticos, mas segue parado no Congresso.
Se o Congresso não queria revogar a legislação que proíbe o aborto, o Supremo estaria disposto a fazê-lo
Fora do Legislativo, o Poder Executivo deu sua contribuição para ampliar o aborto no Brasil em diversas ocasiões. Em 1998, José Serra, então ministro da Saúde de Fernando Henrique Cardoso, assinou norma técnica que facilitava a prática do aborto pelo Sistema Único de Saúde. Lula patrocinou a terceira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH3), que listava, entre as ações estratégicas, “apoiar a aprovação de projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre os seus corpos” – só a intensa repercussão negativa levou o governo a recuar nesse item. Dilma, eleita para a Presidência em 2010, era a favor da legalização e, no governo, agiu de acordo com essa convicção – sancionando, por exemplo, a Lei 12.845/2013 (resultado do já mencionado PLC 3/2013) e, principalmente, nomeando para o Supremo Tribunal Federal o constitucionalista Luís Roberto Barroso, em 2013.
Um ano antes, em 2012, Barroso havia sido um dos advogados que defenderam, no Supremo, que o aborto de fetos anencéfalos não era crime. O julgamento da ADPF 54, em que a vida foi derrotada por oito votos a dois, deu aos militantes pró-aborto o primeiro sinal de que o caminho passaria pelo Judiciário. Na esteira dessa decisão, juízes chegaram a autorizar a morte de bebês com outras doenças, como síndrome de Edwards. Quando o zika vírus levou a um aumento nos casos de microcefalia, em 2016, o Instituto Anis, que esteve por trás da ADPF 54 (mas que, por restrições constitucionais, não podia propor a ação, o que foi feito pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde), anunciou que iria novamente ao STF para pleitear a liberação também neste caso, ainda que não se tratasse de doença incompatível com a vida. Dessa vez, a Associação Nacional de Defensores Públicos assumiu a tarefa e protocolou a ADI 5581, que chegou a entrar na pauta do STF, mas não foi julgada até hoje.
Dias antes de a ADI 5581 quase ter sido julgada, no entanto, o Supremo deu um grande presente à militância abortista. A Primeira Turma julgava um habeas corpus para revogar a prisão preventiva de cinco médicos e funcionários de uma clínica clandestina de aborto. O que estava em pauta era única e exclusivamente a liberdade dos cinco acusados, mas Barroso aproveitou a chance para decidir que o aborto não era crime se realizado no primeiro trimestre de gestação, e foi acompanhado por Edson Fachin e Rosa Weber. Estava dado o recado: se o Congresso não queria revogar a legislação que proíbe o aborto, o Supremo estaria disposto a fazê-lo. O PSol entendeu a mensagem e, em março do ano passado, protocolou a ADPF 442, questionando a constitucionalidade dos artigos 124 e 126 do Código Penal.
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Assim, se hoje o Brasil nunca esteve tão perto de legalizar o aborto, isso se deve à lenta mudança de estratégia do movimento abortista, saindo do Legislativo, onde estão os representantes do povo e onde são feitas as leis, para recorrer ao Judiciário, que deu mostras mais que suficientes de estar disposto a reescrever a lei por conta própria – impulso do qual nem a Constituição escapa – nos mais diversos temas. E o fato de um partido político ter resolvido conseguir seus objetivos pela via torta do ativismo judicial mostra o quanto a legenda preza o debate parlamentar. Apenas um enorme desprezo coletivo pela lei e pelo processo legislativo, que pouco importam diante da vontade de alguns iluminados, corroborado pela postura voluntarista de alguns magistrados, explica o que está ocorrendo agora.