Em uma eleição na qual o alegado “combate às fake news” foi levado aos extremos, a ponto de a Justiça Eleitoral ter cruzado todos os limites da legalidade (ao impor até mesmo censura prévia a conteúdos) e da isonomia (ao estabelecer critérios muito mais rígidos para a campanha de um candidato, enquanto a outro se permite tudo), é de uma enorme ironia que a campanha para o segundo turno termine com a inauguração de uma nova categoria de propaganda eleitoral: as fake news oficialmente chanceladas pelo Tribunal Superior Eleitoral. Ao determinar que a Jovem Pan veicule um direito de resposta solicitado pela campanha do ex-presidente, ex-presidiário e ex-condenado Lula, o presidente da corte, Alexandre de Moraes, permitiu que a mentira possa circular livremente, mesmo depois de examinada pela autoridade que deveria coibi-la.
Contrariada com o fato de comentaristas da rede mencionarem as condenações de Lula nos casos do tríplex do Guarujá e do sítio de Atibaia, todas anuladas posteriormente pelo STF, a campanha petista acionou o TSE e conseguiu tanto a censura – pois os comentaristas Zoe Martinez, Roberto Motta e Ana Paula Henkel ficaram proibidos de mencionar as condenações – quanto o direito de resposta. A relatora do pedido havia sido contrária, mas acabou vencida no plenário, com Moraes abrindo a dissidência. A Jovem Pan questionou o fato de o vídeo que deveria publicar trazer a inserção “Lula 13”, configurando propaganda eleitoral que extrapolaria a função do direito de resposta, mas nesta quinta-feira Moraes negou o recurso e ordenou a veiculação do vídeo.
A validação judicial das fake news é a desmoralização final da corte que se perdeu totalmente em sua missão de combater a mentira
“Em resposta às declarações dos jornalistas Roberto Motta e Ana Paula Henkel no Programa Pingos nos Is, é necessário restabelecer a verdade. O Supremo Tribunal Federal confirmou a inocência do ex-presidente Lula derrubando condenações ilegítimas impostas por um juízo incompetente. A ONU reconheceu que os processos contra Lula desrespeitaram o processo legal e violaram seus direitos políticos. Lula venceu também 26 processos contra ele. Não há dúvida: Lula é inocente”, diz o texto redigido pela defesa de Lula e aprovado por Moraes. Uma peça que mereceria as célebres palavras de Luke Skywalker em Os Últimos Jedi, oitavo filme da saga Star Wars: “Impressionante. Cada palavra nessa frase está errada”.
O fato de não pesar contra Lula nenhuma condenação judicial (a definição “formal” ou “jurídica” de inocência), pois as que havia foram anuladas pelo Supremo naquele tenebroso março de 2021, não significa que ele seja de facto inocente – e o robustíssimo conjunto probatório levantado pela Lava Jato o demonstra bem, mesmo tendo se tornado inútil para uso em um tribunal. Ao derrubar as condenações, o STF não reconheceu a inocência de Lula, pois não é função dos tribunais superiores avaliar culpabilidade ou inocência; a corte simplesmente inventou uma irregularidade processual para determinar a anulação das sentenças e o reinício das ações. A referência à Organização das Nações Unidas é exagerada: apenas o Comitê de Direitos Humanos do órgão se pronunciou sobre o caso dentro do sistema da ONU.
E o emprego do verbo “vencer” em referência aos “26 processos” exige uma interpretação muito elástica do termo, pois o único processo que Lula efetivamente “venceu” ao ser absolvido foi o do chamado “quadrilhão do PT”. De resto, o petista não tem a seu favor nenhuma outra absolvição: houve casos que prescreveram, como o do tríplex; que tiveram denúncia arquivada por falta de provas, devido à decisão que considerou Sergio Moro suspeito – foi o caso do sítio; ou que estão suspensos por ordem do STF, como o da compra dos caças suecos e o do Instituto Lula, em que Ricardo Lewandowski inventou uma incrível “suspeição por associação” para alegar que também a força-tarefa do MP em Curitiba não deveria ter sido a responsável pelas investigações. Em outras palavras, o emaranhado recursal brasileiro e a vontade de alguns ministros do STF simplesmente impediu que Lula fosse julgado em todos esses casos.
A pergunta que todo brasileiro minimamente ciente da verdade dos fatos se faz neste momento é: como é possível? A mentira é evidente, e mesmo assim Moraes não apenas permitiu que ela circule: ele determinou que isso ocorra. A lei faculta ao magistrado recusar o conteúdo de um direito de resposta – como quando o texto contém ataques ao autor das afirmações que se pretende contestar. Neste caso, em que os ministros do TSE se arrogaram o papel de paladinos contra a desinformação, que explicação existe para que permitam, com tanta empáfia, a veiculação de algo “sabidamente inverídico”, para usar a expressão da moda? A resposta é que não existe explicação alguma. Ao menos não uma que tenha o mínimo de razoabilidade.
Depois de impedir pela censura a divulgação de fatos verídicos envolvendo Lula, e de proporcionar (independentemente da intenção) um favorecimento indevido a um dos candidatos com a ausência de critérios objetivos que pudessem ser aplicados a ambos os postulantes ao Planalto, a validação judicial das fake news é a desmoralização final da corte que se perdeu totalmente em sua missão de combater a mentira. Pensando bem, chega a ser apropriado que a campanha termine dessa forma.