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Editorial

A mitologia do encarceramento no Brasil

(Foto: Josue Teixeira/Arquivo Gazeta do Povo)

“Do atual MJSP, você não vai ouvir o surrado discurso de que se prende demais no Brasil”, tuitou no sábado, 15 de fevereiro, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro. Ele se referia aos dados sobre população carcerária divulgados pelo governo na sexta-feira e referentes a junho de 2019 – os últimos números oficiais eram de junho de 2016. Já era hora de as autoridades confrontarem o discurso do “encarceramento em massa”, enviesado ideologicamente e baseado, muitas vezes, em uma leitura seletiva dos dados, e Moro demonstra saber onde estão os gargalos de nosso sistema judicial e prisional.

De acordo com os números, há 773.151 pessoas com algum tipo de restrição de liberdade no país, incluindo o sistema penitenciário e outras carceragens. Destas, menos da metade está em regime fechado – são 348.371 detentos, ou 46% do total. Outros 126.146 cumprem pena em regime semiaberto e 27.069, em regime aberto. Os presos provisórios, que ainda aguardam julgamento, são 253.963, ou 33,5% do total. Números como estes deram origem a uma série de mitos envolvendo o encarceramento no Brasil, a começar pelo maior deles, o de que no Brasil “prende-se demais” – afinal, a população privada de liberdade triplicou desde 2000 e o país tem a terceira maior população carcerária do mundo.

Olhar números absolutos, no entanto, é enganador: todos os líderes neste quesito são países que estão entre os mais populosos do planeta, e seria natural que também eles liderassem os rankings de encarceramento. Quando se observa a proporção de pessoas privadas de liberdade em comparação com a população, o Brasil desce muito na lista – os dados mais recentes do World Prison Brief, referentes a 2018, deixam o Brasil na 23.ª posição, bem atrás, por exemplo, de Cuba, a 7.ª colocada na lista liderada pelos Estados Unidos. Mas são outros os números que permitem concluir se o Brasil é realmente um país que “prende muito”.

Se a imensa maioria dos homicidas, estupradores e assaltantes continua nas ruas, o Brasil não é um país que “prende demais”: é um país que prende muito pouco

Menos de 10% dos casos de homicídio no Brasil são solucionados – as estimativas variam entre 5% e 8%, um número vergonhoso quando se sabe que os índices de resolução são muito maiores em nações como Estados Unidos (59%), Austrália (75%), França (80%) e Reino Unido (90%). Mesmo quem deseje desprezar esses números alegando tratar-se de nações desenvolvidas terá de encarar o sucesso do Chile, com 75% de resolução de homicídios. Quanto a outros crimes violentos, as estatísticas são ainda mais raras, variando de estado para estado. Em dezembro de 2018, por exemplo, dados da Polícia Civil de São Paulo, obtidos pela rádio Jovem Pan, mostravam um índice de resolução de 3,6% nos crimes de roubo e 11% nos estupros.

A resolução dos crimes é apenas o primeiro dos gargalos. Se menos de 10% dos assassinos são descobertos no Brasil, menor ainda é a proporção dos que efetivamente vão parar atrás das grades – e mesmo na América Latina a média de condenações por homicídio é de 24 para cada 100 casos, segundo relatório de 2016 da Organização das Nações Unidas. Ora, se a imensa maioria dos homicidas, estupradores e assaltantes – para não falar de outros criminosos que são ameaças à sociedade, como traficantes de drogas – continua nas ruas, o Brasil não é um país que “prende demais”: é um país que prende muito pouco.

A segunda parte do mito do “encarceramento em massa” afirma que, além de prender demais – o que, como acabamos de ver, não é verdade –, o Brasil “prende mal”, no sentido de mandar para a cadeia pessoas cujos crimes não mereceriam a prisão. O problema, aqui, reside na lei penal, e não nos mecanismos de investigação ou julgamento. Em muitos casos que envolvem atos de menor periculosidade, o Judiciário tem procurado aplicar penas alternativas, mas há um limite para este tipo de procedimento; apenas uma reforma abrangente do Código Penal poderia resolver definitivamente a questão, e a dificuldade está em realizar uma mudança coerente: a última grande proposta de reforma do Código Penal era tão absurda que felizmente terminou engavetada, pois não respeitava nenhuma proporcionalidade entre crimes, por exemplo dando pena mais grave ao abandono de animais que à omissão de socorro em casos envolvendo crianças, inválidos ou feridos.

Este mesmo discurso, segundo o qual no Brasil “prende-se mal”, muitas vezes também parte de premissas equivocadas sobre a própria função da pena de prisão. A ressocialização do apenado é, de fato, um aspecto importante, que não pode ser negligenciado e no qual o Brasil vem falhando miseravelmente, mas não é o único. A pena de prisão também existe para a proteção da sociedade, retirando o criminoso do convívio social e evitando que ele cometa novos crimes; além disso, faz-se justiça quando um criminoso perde sua liberdade como punição por seus atos – é o chamado “caráter retributivo” da pena. A chave está sempre na justa proporção entre a gravidade do crime e a pena aplicada.

Tanta mitologia a respeito do encarceramento no Brasil não significa que não haja problemas reais – e eles são muitos. Um terço de presos aguardando julgamento continua a ser um número alto, ainda que abaixo de nações desenvolvidas, como Moro fez questão de lembrar. Além disso, o déficit de vagas nas prisões leva a misturas explosivas, colocando lado a lado presos por crimes menos perigosos e condenados perigosos. São situações que só podem ser resolvidas com a construção de novas unidades e com um Judiciário mais ágil – Moro fez sua parte quando enviou ao Congresso um pacote anticrime com várias medidas que buscavam acelerar o processo penal, mas os parlamentares alteraram significativamente o texto, que agora corre o risco de engessar ainda mais os processos.

“O único meio de diminuir o número de presos é diminuindo o número de crimes (...) não se resolve a criminalidade abrindo as portas das cadeias”, afirmou o ministro em sua sequência de tweets. Seria uma afirmação óbvia em qualquer país desenvolvido, mas no Brasil é algo quase revolucionário após anos de prevalência de um discurso benevolente para com o crime e seus autores. Esta clareza de ideias, a capacidade de identificar os problemas reais da estrutura prisional e a disposição de enfrentá-los são requisitos necessários para mudar a realidade das prisões brasileiras.

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