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Editorial

A MP 966 e a responsabilização dos gestores na pandemia

O ministro do STF Luis Roberto Barroso estabeleceu novos critérios para se definir o "erro grosseiro" na MP 966. (Foto: Nelson Jr./SCO/STF)

Com o reconhecimento do estado de calamidade pública, que dispensa o gestor de realizar licitações, a necessidade de fiscalização ficou redobrada diante da porta aberta para irregularidades, e as suspeitas já começaram a surgir: em Santa Catarina, a compra de 200 respiradores derrubou dois secretários, rendeu uma CPI na Assembleia Legislativa e gerou até pedido de impeachment do governador Carlos Moisés; no Rio de Janeiro, o governador Wilson Witzel também é investigado por um contrato de compra de respiradores, e um ex-subsecretário de Saúde do estado foi preso no início de maio. Por isso, a publicação da Medida Provisória 966, que estabelece critérios para a responsabilização do agente público por atos relacionados à pandemia do coronavírus, despertou reação imediata e suspeita de que o presidente Jair Bolsonaro estaria blindando gestores – e até a si mesmo – de possíveis processos.

O texto da MP afirma que “os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro”, e define, a seguir, no que consistiria esse “erro grosseiro”: “o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”, elencando a seguir uma série de fatores que precisam ser levados em consideração para que se caracterize o “erro grosseiro”, incluindo, por exemplo, “a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência” e “o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da Covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas”.

O objetivo da MP é o de respaldar o gestor que age de boa fé, ainda que possa cometer equívocos neste processo, evitando que ele sucumba diante do “apagão das canetas”

Da simples leitura do texto da medida provisória, conclui-se que ela nem de longe pretende proteger aqueles que estão se aproveitando do estado de calamidade pública para realizar atos de corrupção – estes continuarão enfrentando os tribunais, como se espera que ocorra com Moisés e Witzel caso as investigações apontem a existência de ilegalidades. O objetivo da MP é outro, o de respaldar o gestor que age de boa fé, ainda que possa cometer equívocos neste processo, evitando que ele sucumba diante do que ficou conhecido como “apagão das canetas”: a paralisia decorrente do medo de tomar determinadas atitudes por causa da possibilidade de ter de responder por elas, principalmente quando os órgãos de investigação agem de forma nada razoável.

Como já afirmamos em outras ocasiões, quando se trata do coronavírus quase tudo é incerto, desde possíveis terapias até o melhor modelo de isolamento ou quarentena para achatar a curva de contágio sem deprimir desnecessariamente a economia. Além disso, há uma corrida mundial por insumos e equipamentos para o socorro aos doentes. Chefes do Poder Executivo nos estados e municípios, bem como secretários de Saúde e suas equipes, têm uma série de decisões complicadas a tomar. O que dizer, por exemplo, de um gestor que paga um pouco mais por respiradores porque pretende, com isso, garantir prioridade na entrega? E de um prefeito ou governador que, ao perceber que o surto parece estar controlado em seu estado ou município, decidiu pela reabertura gradual dos negócios, mas viu o número de casos voltar a subir? Se agiram guiados unicamente pela urgência de incrementar sua rede hospitalar, ou pelo desejo de mitigar os efeitos econômicos da pandemia, eles deveriam ser responsabilizados?

Pois a MP 966 vem para dar alguma segurança a esses gestores, ainda que suas decisões tenham gerado resultados indesejados. Não se pretende, aqui, blindar nem a intenção fraudulenta, nem mesmo a ação obstinada de um gestor que tem informações suficientes para desencorajá-lo quanto a certa providência – aqui se encaixaria perfeitamente a definição de “erro grosseiro” presente na MP. Em todos os outros casos, em que há reta intenção de fazer o melhor pela sociedade, o governante não pode acabar dominado pela inércia, convencido de que a melhor forma de não ficar sujeito a um processo por improbidade administrativa é não fazer nada – esperando, talvez, uma ordem judicial para fazer determinada aquisição ou tomar determinada atitude, tirando-lhe a responsabilidade das costas.

A pandemia exige respostas rápidas, e os bons gestores precisam de respaldo legal para agir com a coragem e presteza que o momento pede, sem correrem o risco de serem equiparados aos corruptos ou aos negligentes. Felizmente, o ministro Luís Roberto Barroso, relator no Supremo das ações que questionam a MP 966, teve essa mesma compreensão, votando pela constitucionalidade do texto. No entanto, seu acerto para aí; sempre imbuído da tentação de intrometer-se na seara do Legislativo, resolveu incrementar o conceito de “erro grosseiro”, qualificando-o como “o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente, equilibrado por inobservância das normas e critérios científicos e técnicos”.

Por trás da redação aparentemente sensata esconde-se uma total subordinação das considerações políticas ao tecnicismo cientificista guiado por “organizações e entidades médicas e sanitárias internacional e nacionalmente reconhecidas”. Uma determinação desastrosa, pois não se trata apenas de entregar soberania, mas de fazê-lo por meio da submissão a entidades que já erraram grotescamente no caso da pandemia, e em temas nos quais, como já lembramos, nem sequer existe consenso a respeito dos melhores caminhos a tomar. Este absurdo, no entanto, acabou endossado pela maioria do plenário.

A MP 966 tem lá suas fraquezas na redação, como o emprego do termo “agente público”, muito mais amplo que apenas os gestores que aparentemente são aqueles a quem a regra se destina; mas nem de longe tem as intenções que lhe foram atribuídas. Quem a está efetivamente estragando é o ativismo judicial do STF, que subordina o gestor público a um suposto consenso científico inexistente, substituindo uma insegurança jurídica, aquela do “apagão das canetas”, por outra, impondo-lhe uma obediência cega a “consensos” que estão em mudança constante.

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