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Editorial

A paralisação das comissões arrisca degenerar o Legislativo

O Congresso tem atuado por meio de plataformas digitais. (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)

O mundo todo teve de se reinventar para continuar funcionando e pelo menos em parte do serviço público brasileiro não foi diferente. Enquanto milhões de pessoas eram deslocadas para o regime de trabalho remoto, a fim de não paralisar completamente a atividade econômica do país, a atividade legislativa se adaptava para dar conta das demandas da sociedade em uma das crises mais graves da nossa história recente. A adoção de sessões virtuais deve ser aplaudida e se refletiu em um inegável aumento da produtividade. Mas o modelo em operação no Congresso neste momento traz embutidos sérios riscos ao normal e saudável desempenho do legislativo. Verifica-se uma concentração de poderes sem precedente nas presidências da Câmara e do Senado, acompanhada da perda de participação popular e do entrave de pautas importantes, o que é especialmente agravado pela inatividade das diversas comissões que operam no dia a dia das duas Casas.

Nos últimos três meses, foram 59 propostas votadas na Câmara, com 32 votações concluídas. Isso representou um aumento de 84% em relação a 2019. O Senado, naturalmente, caminhou num ritmo mais lento, mas também foi mais produtivo que o ano anterior, com aumento de 40%. Foram 122 projetos no plenário virtual no Senado entre abril e junho, em 36 sessões plenárias. Essa média de mais de três projetos por sessão é três vezes maior do que a do período correspondente em 2019. Esses números, levantados pela Folha de São Paulo considerando o período de 1.º de abril a 30 de junho, denotam uma boa capacidade de resposta do Congresso, principalmente considerando a paralisia de alguns serviços públicos, como universidades federais que continuam até o presente momento sem aulas, mas sem a contrapartida de redução no salário dos servidores.

Esse avanço só foi possível porque Câmara e Senado instituíram as Sessões Deliberativas Remotas (SDRs), desde o final de março. As SDRs permitiram a votação das pautas, ainda que seu funcionamento tenha demandado adaptação de muitos parlamentares para a observância das regras previstas. Entre as medidas de maior destaque aprovadas nesse período, figura a proposta de emenda à Constituição (PEC) do Orçamento de Guerra, essencial para a liberação de recursos em tempo hábil para ações emergenciais referentes à pandemia. A proposta de socorro a estados e municípios, o auxílio emergencial para as pessoas mais vulneráveis, a criação de linha de crédito para pequenas e microempresas, o novo marco legal do saneamento, entre outras medidas merecem destaque no período.

Em relação a propostas mais polêmicas, no entanto, como o projeto de lei das fake news, esse andamento acelerado inquieta a toda a sociedade. Não há debates que permitam lapidar um projeto dessa envergadura, com potencial de afetar gravemente a liberdade de expressão, e o risco de uma aprovação inconsequente, impulsionada por reações momentâneas apaixonadas ou por motivos inconfessáveis, revela o lado negativo e antidemocrático do atual modus operandi do Congresso. O atual arranjo, no qual as comissões foram suspensas e o processo legislativo mesmo se viu alterado no seu funcionamento normal, dificulta que as vozes discordantes se façam ouvir. Por outro lado, as lideranças partidárias ganharam ainda mais poder para orientar as votações e simplificar o debate. Isso tem feito com que as propostas avancem sem a ritualística própria do legislativo que garante o equilíbrio e uma certa responsabilidade do parlamento.

Em suma a metodologia atual e seus efeitos práticos precisam encetar uma reflexão e uma reação imediatas da sociedade. Tanto no Senado quanto na Câmara, os atos que instituíram as SDRs restringem o cabedal de propostas que podem ser apresentadas, discutidas e votadas. Alguns colegiados conseguiram avançar nos debates, como é o caso da comissão especial criada para analisar a PEC da prisão em segunda instância, que foi capaz inclusive de realizar audiências públicas de maneira remota. Porém, essa não é a regra geral. Enquanto isso, o trabalho nos colegiados vai se acumulando. Na CCJ, por exemplo, existe um engarrafamento de 761 matérias protocoladas aguardando indicação para tramitar. Em outras comissões, o quadro não é muito diferente. Para entender a gravidade do problema, é só pensar no que pode significar a votação de reformas importantes, como a Tributária e a Administrativa, sem que haja espaço correspondente para uma discussão madura, com a participação da sociedade. Os riscos de concentração de poder nas lideranças ao ponto de se criar um parlamentarismo quase autocrático são reais. Apesar do bom senso ter orientado muitos congressistas nas votações até o presente momento, o ganho com agilidade pode se refletir em perda de qualidade da democracia, caso a suspensão das comissões permaneça por mais tempo.

Diante do quadro de imprevisibilidade do retorno da atividade parlamentar, os congressistas têm obrigação de aprimorar a metodologia implementada até aqui, exigindo que os presidentes das duas Casas aprovem o imediato retorno do funcionamento das comissões. A tecnologia já provou que é parceira nesse processo. Não faz sentido omitir-se e permitir a continuidade de um arranjo operacional que confere um poder desmedido a um número muito reduzido de pessoas e que pode deixar um amargo saldo de decisões sem verdadeira legitimidade democrática.

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