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Editorial

A polêmica das biografias

A campanha insensata do grupo Procure Saber e um artigo mal escrito do Código Civil permitiram que se criasse uma tempestade a respeito de princípios que, na verdade, são muito claros

Biografias devem ou não ser previamente autorizadas pelos biografados ou suas famílias antes da publicação? A polêmica surgiu graças ao movimento Procure Saber, capitaneado por Paula Lavigne e que conta com o apoio de diversos artistas, que propõem a exigência de autorização para qualquer biografia. A existência de um texto ambíguo e mal interpretado do novo Código Civil (no caso, seu artigo 20) permitiu que surgisse uma polêmica que, a rigor, segundo os melhores princípios do direito, tanto aqui quanto no direito comparado, não tem qualquer sentido.

A publicação (ou divulgação) de fatos verdadeiros e de interesse público, e de opiniões críticas em temas de interesse público, não pode nunca, em uma democracia, ser proibida ou sujeita a autorização. Há um consenso praticamente universal acerca disso. No direito brasileiro, a tradução normativa desse princípio se encontra nos textos constitucionais que protegem a liberdade de expressão. É à luz deles que o artigo 20 do Código Civil deveria ser lido. A interpretação que muitos fazem desse artigo, segundo a qual hoje se exigiria autorização para a publicação de biografias, só pode ser atribuída à redação desastrada que se deu ao texto legal. Quando se sujeita o artigo 20 a uma leitura detalhada, percebe-se que não existe nenhuma proibição a obras biográficas não autorizadas.

Situação completamente diferente é aquela que envolve a divulgação de fatos falsos – contra a honra, por exemplo –, ou verdadeiros, mas carentes de interesse público (como aqueles que podem atentar contra a honra ou a privacidade, dois valores igualmente protegidos pela Constituição no inciso X do artigo 5.º, logo após a defesa constitucional da liberdade de expressão). Nesses casos, a publicação pode, sim, embora não necessariamente, estar sujeita a restrições. A mesma regra vale para opiniões críticas, quando são ofensivas e carecem de interesse público. Assim formulados, esses princípios não são complexos ou duvidosos, embora o segundo deles, o da legitimidade da restrição, deixe em aberto o tipo de sanção e o grau dela que se pode adotar (como sanções criminais ou cíveis). Por isso, podemos dizer que as dificuldades ou incertezas não estão no campo dos princípios, mas na dimensão do concreto, na caracterização, por exemplo, do que é ou não do âmbito da privacidade ou do que ofende a honra por ausência de veracidade ou interesse público.

As decisões que, até o surgimento recente da polêmica, vinham sendo proferidas pelos tribunais, suspendendo a publicação de determinadas biografias – os casos mais célebres são as biografias de Roberto Carlos e de Mané Garrincha –, tinham em geral por fundamento o princípio correto de que ofensas à honra e à privacidade, direitos tutelados constitucionalmente, não devem ser toleradas. Para analisar se as decisões estavam corretas ou não, se eram justas ou não, devemos responder a duas perguntas, das quais a primeira é: o texto questionado era ofensivo à honra, ou violava a privacidade? Trata-se de algo extremamente delicado e polêmico, sobretudo no que diz respeito à história de personalidades recentes. A segunda questão se refere à admissão ou não de tutela inibitória em temas de liberdade de expressão. Espaço, portanto, há para discussões e é compreensível que se deseje uma normatização para diminuir o campo da incerteza, que se manifesta basicamente nestes termos – que, por si só, já abrem espaço para um importante e construtivo debate jurídico.

O que não faz o menor sentido é introduzir ou considerar a hipótese absurda de se exigir autorização para a publicação de biografias, como deseja o Procure Saber, ou de se impor uma remuneração obrigatória à pessoa ou à família do biografado, como se a liberdade de narrar fatos verdadeiros e de interesse público pudesse passar a depender, como ocorria antes das grandes conquistas do século das luzes, do arbítrio de alguém. Nem mesmo na Europa continental, cujos países têm algumas das legislações mais restritivas em relação ao direito de imagem, as legislações contemplaram semelhante disparate.

Quanto ao artigo 20 do Código Civil, originador de toda a confusão, melhor que fosse reescrito de forma a deixar mais claro o que ele já diz, mas só consegue ser compreendido à custa de certo esforço. Infelizmente não parece haver iniciativas legais nesse sentido. O Projeto de Lei 393/11, que a Câmara tentou, mas não conseguiu, colocar em votação na semana passada, acrescenta um parágrafo ao artigo 20, deixando mais explícita a liberdade para publicação de biografias sem autorização, mas não muda o caput mal escrito do texto legal, ou seja, dá margem a novas polêmicas no futuro.

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