Centro de distribuição da Amazon em Las Vegas: gigante do varejo suspendeu a venda de livro crítico à ideologia de gênero.| Foto: David Becker/AFP
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O Congresso norte-americano está prestes a votar um projeto de lei que segue os passos da equivocada decisão do STF brasileiro ao simplesmente equiparar a homofobia ao racismo. O Equality Act altera a Lei dos Direitos Civis, de 1964, para acrescentar “orientação sexual” e “identidade de gênero” entre as categorias merecedoras de proteção especial. Mas a lei não se limita ao justo e necessário combate à discriminação contra homossexuais ou pessoas transgênero: assim como a decisão judicial brasileira, ela deixa enormes brechas para ataques às liberdades de expressão e religiosa, bem como ao exercício da objeção de consciência. A crítica à ideologia de gênero ou à participação de homens biológicos no esporte feminino poderiam levar à responsabilização judicial.

Enquanto o Equality Act não é aprovado, os censores já agem por conta própria. É o caso da gigante Amazon, que deixou de vender o livro When Harry became Sally: Responding to the transgender moment, de autoria de Ryan Anderson, presidente do Ethics and Public Policy Center (EPPC) e ex-pesquisador da Heritage Foundation. Não se trata simplesmente de uma obra esgotada; a página referente ao livro, que permitiria também a compra das versões eletrônica (para o e-reader Kindle) e audiolivro, foi retirada do ar. A obra, lançada três anos atrás, em fevereiro de 2018, apresenta uma série de argumentos dos mais diversos tipos, dos biológicos e psicológicos aos filosóficos e antropológicos, em contestação aos defensores da ideologia de gênero e da facilitação de terapias de mudança de sexo, mas sem jamais incitar discriminação contra nenhum grupo de pessoas. Segundo Anderson, nem ele, nem a editora foram avisados da decisão da Amazon, contrariando as próprias diretrizes da loja, e até o momento não receberam nenhuma explicação; veículos de imprensa que entraram em contato com a Amazon também ficaram sem resposta.

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Os casos de Ryan Anderson e Donald McNeil Jr. mostram que, no tribunal das políticas identitárias, os “crimes” jamais prescrevem

“Isso não é sobre o modo como você diz, não é sobre quão rigorosa é a sua argumentação, não é sobre o quão caridosamente você apresenta as ideias. É sobre se você discorda da nova ortodoxia”, afirmou Anderson. Essa caça aos dissidentes poderia ter pouco efeito caso se tratasse de uma livraria de bairro, como afirmou Anderson em artigo no site First Things, mas que muda de dimensão quando quem comete a censura é responsável por 83% das vendas de livros em um país. Daí a inaplicabilidade, no caso em questão, do argumento liberal segundo o qual a Amazon, sendo uma empresa privada, pode decidir o que deseja vender. Especialmente quando toma suas decisões de forma contraditória, já que a gigante do varejo segue vendendo inúmeros livros que indubitavelmente seriam classificados como discurso de ódio ou que serviram de base para as ideologias mais assassinas das últimas décadas.

Anderson não é a única vítima recente da polícia do pensamento e da linguagem. Em mais uma prova de que, no tribunal das políticas identitárias, os “crimes” jamais prescrevem, um veteraníssimo repórter do New York Times foi obrigado a se demitir por causa de um episódio ocorrido em 2019. O jornal promoveu uma viagem ao Peru com estudantes de ensino médio, e Donald McNeil Jr. os acompanhou. Em determinado momento, como ele mesmo relata, foi perguntado por uma estudante se uma colega deveria ter sido suspensa do colégio por causa de um vídeo feito quando ela tinha 12 anos (ou seja, bem antes de entrar no ensino médio) e no qual usava uma injúria racial – McNeil não diz qual, mas trata-se de nigger (“crioulo”), que efetivamente é considerado um insulto pesado nos Estados Unidos. O repórter, então, quis saber o contexto no qual a palavra tinha sido usada: a garota estava citando alguém, um trecho de livro, uma letra de música, ou tinha a explícita intenção de ofender? E, ao pedir mais informações, acabou ele mesmo dizendo a “palavra proibida”.

Ora, ninguém com uma capacidade mínima de interpretação de texto julgaria que McNeil estivesse sendo racista na ocasião; ele apenas queria saber mais sobre a situação em que a garota suspensa usou a palavra nigger. Não bastou para a direção do jornal, que, em um ato digno dos totalitarismos soviético ou chinês, não apenas “convenceu” McNeil a se demitir, como também arrancou dele um pedido de desculpas incrivelmente constrangedor.

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No texto dirigido aos colegas, McNeil afirmou que “originalmente, achei que o contexto em que usei essa palavra horrível poderia ser defendido. Agora percebo que não pode. Ela é profundamente ofensiva e dolorosa. O fato de eu até mesmo pensar que poderia defendê-la exibiu um julgamento extraordinariamente ruim”. E encerra dizendo “sinto muito. Eu decepcionei todos vocês”. Um “julgamento extraordinariamente ruim”, na verdade, é o daqueles que acreditam que o contexto não importa ao se julgar o uso de uma expressão considerada insultosa. Tanto é assim que o editor-executivo Dean Baquet acabou recuando da regra “não toleramos linguagem racista, independentemente da intenção”, escrita no comunicado sobre a demissão de McNeil. Mas, àquela altura, já era tarde demais para o repórter veterano.

Mas entre os dois casos há uma diferença crucial. Anderson sabe muito bem que foi vítima de uma injustiça e reagiu contra ela; McNeil aceitou até mesmo a autoimolação, o que levou muitos a questionarem os motivos de tal atitude. Se o jornalista, no fundo, sabe que nada fez de errado, que não estava sendo racista, e mesmo assim aceitou confessar um preconceito deplorável, ele se rendeu à polícia do pensamento de uma forma que, até pouco tempo atrás, só existia em distopias como 1984, de George Orwell. No entanto, se ele está mesmo convencido de que agiu mal, isso significa que já se chegou a um estágio de degradação intelectual extremamente preocupante. Pessoas supostamente sensatas se tornaram incapazes de fazer distinções básicas, aderindo a tabus linguísticos a ponto de a autocensura para não ofender a militância do momento já se tornar automática. Difícil saber qual das duas hipóteses deveríamos considerar pior.