Alguns eventos recentes estimularam notícias e debates teóricos sobre o que se entende por política externa de um país e, especialmente, qual é a política atual do Brasil nas relações exteriores e que avaliação se pode fazer dela. Dois episódios separados envolveram a vacina contra a Covid-19, com o atraso, pela China, no envio ao Brasil do imunizante farmacêutico ativo (IFA), a matéria-prima para a fabricação de vacinas; e o atraso, por parte da Índia, no envio de 2 milhões de doses da vacina da Oxford/AstraZeneca ao Brasil. Chegou-se a cogitar a hipótese de que a China estaria boicotando o Brasil em retaliação a declarações agressivas contra aquele país feitas por parlamentares e representantes do governo brasileiro – ou seja, o governo chinês estaria incomodado e insatisfeito com o tratamento recebido do Brasil, aí incluído o comportamento do ministro das Relações Exteriores. No caso da Índia, o impasse teria sido motivado pela falta de apoio do Brasil em questões do interesse do país asiático em negociações de comércio exterior. Ambas as controvérsias acabaram resolvidas após vários dias de diálogo bilateral.
O outro evento foi a eleição de Joe Biden, do Partido Democrata, para a presidência dos Estados Unidos, derrotando o presidente Donald Trump, do Partido Republicano, que buscava a reeleição. Dado o bom relacionamento pessoal que Jair Bolsonaro mantinha com Trump, inclusive retardando o ato protocolar de cumprimentar o candidato vitorioso em nome da Presidência do Brasil, à espera da manifestação da Justiça norte-americana diante das ações alegando fraude eleitoral, surgiu grande onda de que as relações Brasil-Estados Unidos iriam sofrer abalos e tropeços. Ao fim, Bolsonaro reconheceu a vitória de Biden e enviou-lhe uma mensagem por ocasião de sua posse, em 20 de janeiro.
O país precisa ter uma política externa pensada e decidida em função de uma política nacional maior e adequada ao projeto de governo, jamais fruto de arroubos isolados de quem quer que seja
Esses eventos levantaram duas perguntas: qual é a política externa brasileira atual? E qual seria a melhor política a ser adotada em face da realidade mundial atual e dos interesses brasileiros? De início, há duas hipóteses: ou o país faz sua política externa tendo por base unicamente os interesses nacionais, sem levar muito em conta a situação e a políticas dos demais países; ou adota uma política que considere as realidades de seus parceiros quanto ao regime político, sistema econômico, práticas ambientais, políticas de direitos humanos etc. Logo que Bolsonaro foi eleito, surgiu a hipótese de que, por sua origem e ligação militar, ele poderia adotar o chamado “pragmatismo responsável” como o princípio básico da política externa a ser executada pelo Ministério das Relações Exteriores, espelhando-se na política externa do governo Ernesto Geisel (1974-1979). O “pragmatismo responsável” seria a estratégia de ação baseada nos interesses nacionais; as relações com outros países seriam estabelecidas ainda que houvesse diferença entre o Brasil e seus parceiros em relação ao regime de governo, sistema econômico, direitos humanos e práticas ambientais.
O “pragmatismo responsável” ganhou notoriedade sob a gestão do chanceler Antônio Azeredo da Silveira, no governo Geisel, e foi influenciado pela crise mundial do petróleo, que elevou o preço do produto de US$ 3,30 para US$ 14 o barril, em 1973-1974, provocou déficits nas contas brasileiras com o resto do mundo e funcionou com um freio ao crescimento econômico. A diretriz na época passou a ser exportar o máximo possível, sem prestar muita atenção na realidade política e econômica interna dos parceiros, e o chanceler Azeredo da Silveira se dedicou a ampliar os vínculos com os países árabes para importar petróleo deles em troca de vender-lhes produtos primários e industriais.
Por determinação do presidente Geisel, o Brasil iniciou a ampliação de suas relações comerciais e diplomáticas com a China, fato que coincidiu com o começo do aumento na produção de soja que ocorreria nos anos seguintes, fazendo o Brasil chegar atualmente a ser o maior produtor mundial da oleaginosa. Corria solta a acusação, por parte das elites políticas e intelectuais brasileiras, de que o chanceler Azeredo da Silveira estava se inclinando demais ao socialismo e ao terceiro-mundismo, versão que foi estimulada pela tensão nas relações Brasil-Estados Unidos, que culminou com a recusa do governo norte-americano em apoiar o projeto nuclear brasileiro – Geisel acabaria assinando um acordo nuclear com a Alemanha Ocidental.
Após mais de uma década de alinhamento – e, em alguns momentos, até mesmo subserviência – com as piores ditaduras latino-americanas e de desprezo por grandes parceiros comerciais em nome de ideologias ultrapassadas, o governo Bolsonaro e seu ministro das Relações Exteriores inclinaram-se para uma aliança estreita com os Estados Unidos, deixando alguns membros do governo e do parlamento à vontade para lançar ataques verbais contra a China e negar alguns apoios à Índia, estando certos ou não no conteúdo das críticas, e apesar da existência do grupo dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), países emergentes com interesses parecidos. No governo Lula, a ideia da cooperação mútua entre os Brics havia se fortalecido, inclusive com movimentos para criar o Banco dos Brics, destinado a financiar projetos para o desenvolvimento econômico dos países-membros. O projeto não morreu, mas também não prosperou o quanto sua propaganda fazia crer.
Especialistas em relações internacionais afirmam que não há setor da vida nacional em que as palavras tenham peso e consequências maiores do que nas relações diplomáticas externas. Por isso, as palavras e os gestos simbólicos carregam uma importância muitas vezes desproporcional em relação a seu conteúdo. Uma simples crítica ou mera declaração de desaprovação pode provocar reação bem maior que a gravidade de sua substância. Por isso, é prejudicial que governantes, autoridades públicas e políticos – no mais das vezes sem conhecimentos de ciência política ou de relações internacionais – se dediquem a falar o que lhes vem à cabeça a respeito de países e governos estrangeiros. Discursos e palavras têm consequências, daí tantos terem avaliado que China e Índia não atrasaram seus embarques para o Brasil simplesmente por problemas técnicos.
VEJA TAMBÉM:
- O papel do Brasil na comunidade internacional (editorial de 9 de dezembro de 2018)
- A postura não cooperativa com Índia e China atrasa a vacinação no Brasil (artigo de Michele Hastreiter, publicado em 21 de janeiro de 2021)
- Biden e Bolsonaro: descompasso político (artigo de Márcio Coimbra, publicado em 20 de janeiro de 2021)
Esses exemplos e fatos remetem à necessidade de o país ter uma política externa pensada e decidida em função de uma política nacional maior e adequada ao projeto de governo, jamais fruto de arroubos isolados de quem quer que seja. Os governantes, os burocratas estatais e os políticos brasileiros precisam aprender a primeira lição sobre as relações internacionais expressa no conhecido provérbio “a palavra é prata, o silêncio é ouro”. O cargo público ou eletivo não faz automaticamente de seu detentor um porta-voz do país frente ao resto do mundo. Para isso há pessoas especializadas, tanto na chancelaria quanto em postos-chave de órgãos que exigem negociações com parceiros externos. Se China e Índia consideraram os atritos verbais ou reais para atrasar o embarque é coisa que não se sabe, mesmo porque as autoridades dos dois países agiram com cautela e comedimento verbal e alegaram que o atraso se deveu a problemas técnicos.
Um país pode, sim, ter uma política externa com posições que não agradarão a todos seus parceiros. É possível e meritório defender a democracia e condenar ações de ditaduras que violam rotineiramente os direitos humanos; é possível e meritório promover plataformas importantes em temas morais, protegendo a dignidade da vida humana e da família; é possível e meritório atuar para derrubar protecionismos e promover o livre comércio. Mas, em todos esses casos e em muitos outros, o método para externar as posições nacionais e as razões de seu conteúdo, e a forma de conduzir negociações e declarações, não são coisa para amadores nem para qualquer político ou autoridade.