As relações entre Executivo e Legislativo no Brasil estão realmente fadadas a seguir o modelo do “toma-lá-dá-cá”? Com a aliança entre Jair Bolsonaro e o Centrão, defensores do presidente, que até então hostilizavam esses partidos e pregavam o “tudo ou nada” com o Congresso, passaram a justificar a medida como necessária para a famosa “governabilidade”. A reviravolta pede luz sobre os possíveis modelos de interação entre os poderes, sobre o que significa a representatividade, sobre como governar.
Uma postura possível é julgar que, como o presidente da República foi legitimado com o voto da maioria da população (ou, pelo menos, a maioria daqueles que escolheram um candidato), é o seu programa que precisa ser implementado, sem maiores questionamentos. É uma visão segundo a qual caberia ao Congresso apenas se curvar ao Executivo, tornando-se um mero confirmador do que vem do Planalto. Alterar projetos ou derrubá-los, nesta ótica, se torna quase um ato de insubordinação ou revolta próprio de quem quer retirar do presidente da República o poder que lhe foi concedido pelo povo nas urnas.
O equívoco básico desta premissa é esquecer-se de que o Congresso tem tanta legitimidade quanto qualquer presidente da República. Foi eleito pela mesma população – e eleito com a função específica de legislar, como bem manda o modelo de tripartição dos poderes. Nada disso, no entanto, importa para quem enxerga o Congresso como subordinado ao Executivo. O resultado inevitável é o choque, porque, como já afirmamos neste espaço, esta mentalidade trata o processo legislativo como um jogo de “soma zero”, em que, para o governo ganhar, todos os demais precisam perder – inclusive aqueles que concordam com determinada plataforma, mas discordam em pontos específicos e gostariam não de derrubá-la, mas de aprimorá-la –, e vice-versa.
Buscar aliados, mais que meros “parceiros de negócio”, deveria ser a meta de um governo
Este é o tipo de estratégia que agrada muito poucos – mais precisamente, apenas os defensores incondicionais do governo, que exaltam sua “pureza ideológica” – e cria uma enorme e generalizada insatisfação entre todos os demais que não manifestam uma adesão incondicional ao Executivo, alijados da discussão e tratados como inimigos mesmo quando suas discordâncias são apenas pontuais. A tensão é acirrada e o próprio processo legislativo perde, pois não há abertura para se lapidar as propostas. Não surpreende que essa postura ameace seriamente os resultados práticos almejados pelo governo, levando a derrotas que poderiam ser evitadas caso houvesse uma propensão ao diálogo, e que o adesismo explora de forma vitimista, como se o Congresso não estivesse “deixando o presidente trabalhar”.
Na ponta oposta está a negociata – não necessariamente como sinônimo de corrupção, apesar dos exemplos recentes do mensalão e do petrolão, mas como sinônimo de troca de apoio parlamentar por outra moeda do agrado daqueles que se pretende trazer para a base aliada. O fisiologismo existe, e não há como negá-lo. O gigantismo estatal fez proliferar toda uma série de cargos em todos os escalões de governo que podem ser ocupados por apadrinhados, servir de prêmio de consolação para derrotados nas urnas ou funcionar como trampolim eleitoral para políticos. Para uns, a perspectiva de conseguir um bom salário já basta; outros ganharão uma caneta para direcionar recursos e obras a currais eleitorais, próprios ou de amigos; e os piores terão uma oportunidade para a rapinagem.
Negociações que envolvem a concessão de cargos para a construção de uma base parlamentar não são necessariamente imorais – qualquer democracia pluripartidária inclui esta dinâmica em maior ou menor grau quando uma legenda não consegue maioria absoluta no parlamento. Mas, quando isso ocorre de forma saudável, costuma envolver parceiros com afinidade ideológica e projetos em comum, uma realidade muito diferente do “é dando que se recebe”, roubado da famosa Oração de São Francisco por Roberto Cardoso Alves ainda durante os trabalhos da Constituinte de 1988, para descrever como José Sarney conseguiu um quinto ano de mandato.
A frase definiu o que passou a ser aceito como o modelo brasileiro de “presidencialismo de coalizão”: partidos sem ideologia definida ou até mesmo de perfil oposto ao do governante ganham ministérios ou diretorias com a “porteira fechada”, em negociações que muitas vezes envolvem figuras nas quais a carreira política e a ficha corrida se misturam. Aqui não existe diálogo sobre plataformas e projetos, mas mero comércio – isso quando a relação não degenera para a chantagem aberta, caso um dos lados fareje fraqueza no outro, exigindo cada vez mais apoio ou cargos, dependendo da balança de poder.
É possível escapar destes dois modelos? Ainda que muitos defendam que não, dizendo que a própria natureza do sistema político brasileiro perpetua o ciclo da negociata, o Executivo não precisa abrir mão de seus princípios quando exerce uma liderança esclarecida. Isso exige que se tenha um projeto de país sólido, consistente, razoável, apresentado de maneira clara à população e ao parlamento, ao mesmo tempo que há disposição para concessões naquilo que não for considerado essencial. Quando isso ocorre, governos conseguem aprovar projetos mesmo com minoria parlamentar – pensemos, por exemplo, no caso dos Estados Unidos, quando uma das casas do Congresso tem maioria de oposição ao presidente –, mas esse trabalho fica ainda mais fácil quando se encontra parte substancial do Congresso que compartilha dos mesmos objetivos. Para chegar a esse resultado, no entanto, é preciso estar aberto ao diálogo e à negociação honesta com partidos e parlamentares que também gostariam de ver representados seus interesses e visões de mundo no processo legislativo, de forma legítima.
Buscar aliados, mais que meros “parceiros de negócio”, deveria ser a meta de um governo. Partidos e parlamentares que defendem integralmente o mesmo programa podem se tornar aliados permanentes; mas mesmo aqueles que compartilham apenas parte do ideário do governo podem e devem se tornar aliados circunstanciais, desde que o Executivo esteja aberto a ouvir suas propostas. É assim que projetos e reformas são aprimorados; e, se um governo realmente julga que sua maneira de ver a questão ainda é a melhor, que seja capaz de convencer, não de simplesmente se impor em um processo que, como já explicamos, queima pontes e gera indiferença, quando não oposição, em quem poderia ser um aliado. Havendo convergência de ideais e respeito mútuo, divergências pontuais são mais facilmente superadas na formação da maioria necessária à aprovação de projetos.
Este “caminho do meio” é o mais exigente: requer inteligência e humildade na construção de consensos, algo que não é necessário nem na postura intolerante de quem não aceita contribuições alheias, nem no pragmatismo cínico da simples troca de cargos por apoio. Mas são essas qualidades que transformam líderes em estadistas.
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