Um novo episódio da controvérsia sobre as possíveis punições a brasileiros que, por quaisquer motivos, recusem a vacina contra a Covid-19 foi disparado na véspera do feriado de Finados, quando o Ministério do Trabalho emitiu a Portaria 620, que considera discriminatória a dispensa por justa causa de empregados que não se vacinem. O texto foi alvo de inúmeros ataques tanto pelo seu conteúdo, considerado pelos críticos uma ameaça à saúde pública, quanto pela escolha da portaria como instrumento jurídico para se preservar a liberdade daqueles que não queiram se vacinar.
Que a vacina se mostrou uma ferramenta eficaz – a mais eficaz de todas – para apressar o fim da pandemia é muito evidente. À medida que a imunização avançou no Brasil, todos os indicadores da Covid retrocederam, permitindo que vários municípios e estados afrouxem medidas restritivas e permitam o retorno dos negócios a um funcionamento pleno. Tendo tudo isso em vista, uma empresa privada pode muito bem considerar que a vacinação de seus empregados seja essencial para reduzir riscos no ambiente de trabalho; por outro lado, é possível que haja colaboradores que rejeitem a vacina, por motivos os mais diversos. O que fazer neste caso?
Sob o pretexto de preservar a liberdade do trabalhador que não quer se vacinar, a portaria viola frontalmente outra liberdade, a do empregador que considera necessária a vacinação de seus empregados
É aqui que reside o grande equívoco da Portaria 620: sob o pretexto de preservar uma liberdade, a do trabalhador que não quer se vacinar, ela viola frontalmente outra liberdade: a do empregador que considera necessária a vacinação de seus empregados. Ela o faz quando inclui o certificado de vacinação na lista de “documentos discriminatórios” citada no parágrafo 1.º do artigo 1.º, tanto para a manutenção da relação de emprego quanto para a contratação de novos empregados, já que a “obrigatoriedade de certificado de vacinação” em processos seletivos também é considerada “prática discriminatória”; isso, na prática, impede as empresas de implantar todas as políticas de saúde que julgarem necessárias no combate ao coronavírus e para a proteção de suas equipes.
A confusão conceitual é tanta que o certificado de vacinação figura na relação de “documentos discriminatórios” ao lado de testes de gravidez ou atestados de esterilização. Assim, o texto mistura situações totalmente diferentes; afinal, o “status reprodutivo” de um trabalhador (ou, mais frequentemente, trabalhadora) diz respeito apenas a ele, e de fato é discriminatório condicionar a contratação ou manutenção de um empregado a um suposto compromisso de não ter filhos. A não vacinação é situação diversa e que merece outro tipo de tratamento, pois comporta um risco de saúde aos que compartilham do mesmo espaço de trabalho – esta lógica justifica, por exemplo, a exigência de atestados de vacinação para se realizar matrículas de crianças na rede escolar.
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- O que há de errado com os passaportes de vacina? (artigo de Luiz de Moraes, publicado em 28 de setembro de 2021)
E, ao errar no mérito, a portaria erra também na forma, pois portarias são uma orientação interna – por exemplo, a auditores do ministério que terão de decidir se autuam ou não determinada empresa. No entanto, todo o texto da Portaria 620 está redigido como dirigindo-se à sociedade, pretendendo implantar normas relativas a processos seletivos e dispensa de empregados, algo que só poderia ser feito por força de lei aprovada no Congresso Nacional.
Todos os equívocos, conceituais e formais, da Portaria 620, entretanto, não significam que não exista um problema real ocorrendo no Direito trabalhista, a respeito da legitimidade da dispensa por justa causa de trabalhadores que recusam a vacina. O Ministério Público do Trabalho defende essa possibilidade, e ao menos um Tribunal Regional do Trabalho, o de São Paulo, já manteve a justa causa em um caso de dispensa motivada por recusa a se vacinar. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) ainda não se debruçou sobre o tema, mas sua presidente, Maria Cristina Pedruzzi, afirmou em entrevista concordar que haveria motivo para a justa causa. A tese, no entanto, não se sustenta do ponto de vista jurídico.
A mesma liberdade que a empresa tem de desejar que todos os funcionários se imunizem também lhe permite dispensar os empregados que rejeitem a vacina – mas essa demissão não se dará por justa causa; a empresa fica obrigada a pagar todas as verbas indenizatórias
Não existe, no artigo 482 da CLT, nenhuma situação semelhante à recusa a se vacinar como justificativa para a dispensa por justa causa. O mais próximo disso seria o “ato de indisciplina ou insubordinação” descrito na alínea “h”. Esta indisciplina ou insubordinação, no caso, pode consistir em desrespeito à lei, a regulamentos internos da empresa ou a convenções coletivas da respectiva categoria. No Brasil, a Lei 13.979/20 deu a estados e municípios o poder de instituir a vacinação obrigatória, mas até o momento nenhum deles o fez efetivamente. Em outras palavras, se não há obrigação legal de se vacinar, o empregado que não se imuniza não está desrespeitando lei alguma. Da mesma forma, não se tem notícia de convenção coletiva que tenha obrigado toda uma categoria de profissionais a se vacinar.
Resta, por fim, a possibilidade de desobediência a regulamentos internos da empresa. E aqui entra em cena a Súmula 51 do TST, segundo a qual mudanças em regulamentos internos “que revoguem ou alterem vantagens deferidas anteriormente” só se aplicam a trabalhadores admitidos depois da alteração. Se, quando certo empregado ingressou na empresa, não era obrigatório estar devidamente imunizado, é esta a regra que segue valendo para ele, e ele não pode ser dispensado por justa causa caso não queira se vacinar contra a Covid-19, ainda que a empresa tenha incluído a obrigatoriedade de vacinação no seu regulamento. Apenas os contratados após a alteração precisariam comprovar a vacinação – isso, repetimos, se a Portaria 620 não tivesse interferido abusivamente na liberdade das empresas ao considerar “discriminatória” a exigência da carteira de vacinação.
Isso significa que uma empresa fica obrigada a manter um empregado não vacinado? Evidente que não. A mesma liberdade que a empresa tem de desejar que todos os colaboradores se imunizem também lhe permite dispensar os empregados que rejeitem a vacina – de preferência, depois que forem esgotados todos os outros meios de entendimento. Mas essa dispensa não se dará por justa causa; a empresa fica obrigada a pagar todas as verbas indenizatórias decorrentes da dispensa sem justa causa. É bem verdade que esta interpretação pode levar a casos complexos, como o de empregados de instituições de saúde que recusem a vacinação – foi justamente o caso de uma auxiliar de limpeza de um hospital que levou à decisão do TRT-2 sobre a justa causa. Ninguém haverá de negar que o risco neste caso acaba potencializado, e que soa estranho forçar um hospital ou clínica a pagar as verbas indenizatórias para dispensar um empregado que escolhe não se vacinar. No entanto, seria esperável que tanto regulamentos internos desses estabelecimentos quanto convenções coletivas de profissionais do setor de saúde já previssem a vacinação obrigatória contra todo tipo de doença, não apenas a Covid-19; se não o fazem, há omissão que precisa ser sanada o quanto antes.
A Constituição, em seu artigo 5.º, II, afirma que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Esta é cláusula pétrea, que prevalece seja sobre outras previsões constitucionais, como aquela a respeito da preservação da saúde pública, no artigo 196, seja sobre portarias ministeriais. Não há lei que obrigue as pessoas a se imunizar contra a Covid-19; e não há lei que proíba empresas de pedir o certificado de vacinação de seus funcionários ou de candidatos a uma vaga de emprego. Erra a Justiça do Trabalho quando defende a dispensa por justa causa de trabalhadores não vacinados, erra o Ministério do Trabalho quando proíbe empresas de definir que a melhor política de saúde é ter vacinados todos os seus funcionários e de agir neste sentido.