Embora nem tenha começado a tramitar no Congresso Nacional, a proposta de reforma da Previdência apresentada pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, já começou a ser retalhada por lideranças parlamentares, cada um pressionando pela retirada deste ou daquele item. E, ainda que o projeto tenha sido desenhado com alguns trechos mais “descartáveis” ou que podem sofrer alterações sem prejudicar a essência da reforma e seu impacto nos cofres públicos, o governo talvez esteja mostrando suas cartas cedo demais.
A nova regra do Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos e deficientes de baixa renda, teve rejeição quase unânime. Hoje, ele corresponde a um salário mínimo para quem tem acima de 65 anos. O governo queria começar a pagar o BPC aos 60 anos, mas no valor de R$ 400, que subiria para um salário mínimo apenas quando o beneficiário chegasse aos 70 anos. “Isso não passa de jeito nenhum”, disse o líder do Democratas na Câmara, Elmar Nascimento (BA). PSDB e PSD também já se mostraram contrários a reduções no valor pago aos idosos.
Ao mostrar tão cedo onde está disposto a ceder, o governo entrega sua estratégia logo no início da partida
O PR tem outras mudanças em mente, como um alívio nas regras propostas para professores – aposentadoria aos 60 anos para ambos os sexos, com 30 anos de contribuição; hoje não existe idade mínima para a categoria – e para a aposentadoria rural, que hoje é a maior fonte de déficit da Previdência. A bancada ruralista, que inclui quase 40% da Câmara dos Deputados, já declarou apoio à proposta, mas também disse estar interessada em negociar aspectos da aposentadoria rural. Outro partido, o Podemos, defendeu uma idade mínima mais baixa para que as mulheres possam se aposentar – a proposta de Bolsonaro é de 62 anos.
Com a divulgação da proposta, era esperado que os partidos começassem a apresentar suas demandas para poder apoiar a reforma – seja por convicção ideológica, seja para agradar bases eleitorais, seja com objetivos mais espúrios, como a conquista de alguns cargos de segundo e terceiro escalão. Mas, provavelmente enxergando uma oportunidade de já conquistar o apoio necessário para a aprovação da reforma, que exige 308 deputados, o governo e o próprio Bolsonaro estão demonstrando uma precipitação perigosa.
Na quinta-feira, em café da manhã com jornalistas, Bolsonaro já adiantou que pode baixar a idade mínima para a aposentadoria das mulheres, de 62 para 60 anos. Também já lançou a possibilidade de rever as mudanças no BPC, e citou ainda outro possível recuo, no cálculo da pensão por morte – algo de que os deputados não estavam se queixando, ou pelo menos não publicamente. As mudanças citadas pelo presidente podem até estar entre aquelas que o governo já imaginava ter de fazer; no entanto, ao ceder tão cedo em tantas frentes, Bolsonaro deixa o flanco aberto para novas investidas dos deputados, e que poderão atacar pontos bem mais fundamentais da reforma.
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Mesmo a declaração da líder do governo no Congresso, deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), de que “a gente tem de ter a economia na casa do trilhão”, tem um calcanhar de Aquiles. Se por um lado ela traça um limite muito razoável, já que, se a economia ficar abaixo de R$ 1 trilhão, a reforma perde sua eficácia, por outro ela permite novas investidas contra o texto, deixando subentendido que abrir mão de quase 15% da economia inicialmente prevista ainda seria aceitável. Se os recuos já admitidos pelo governo não tiverem um impacto tão grande assim, os parlamentares poderiam apresentar novas exigências alegando que a economia final ainda ficaria dentro do limite de R$ 1 trilhão.
Tudo isso só está ocorrendo porque, apesar de os números demonstrarem a necessidade inequívoca da reforma, o governo ainda não conquistou para seu lado atores importantes, como a opinião pública. Hoje, os deputados se veem na posição de poder pressionar o governo. O ideal seria que os brasileiros já estivessem tão conscientes da necessidade da reforma que o custo político-eleitoral de votar contra as mudanças, ou de forçar concessões por populismo ou fisiologismo, seria alto demais para um parlamentar. Infelizmente, ainda não chegamos a este estágio, apesar dos esforços de comunicação do governo, que tem ressaltado, de forma acertada, o caráter igualitário da reforma.
A tramitação da reforma da Previdência não é um jogo de pôquer, em que os participantes já têm de mostrar toda a sua mão após algumas poucas rodadas. É uma partida de xadrez, em que sacrificar peças logo nos primeiros movimentos só se justifica para conseguir logo o xeque-mate; do contrário, o jogador passará a partida toda em desvantagem, se defendendo para não perder ainda mais espaço e material para o oponente. Ao mostrar tão cedo onde está disposto a ceder, em vez de simplesmente dizer que está atento às demandas e que irá analisá-las caso a caso, para estimar seu impacto, o governo entrega sua estratégia logo no início da partida. Mas ainda há tempo de rever os planos para jogar com mais inteligência e conseguir a vitória.