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Editorial

A retórica do ultimato

O presidente da República, Jair Bolsonaro (Foto: Presidência da República)

A presente crise institucional entre os três Poderes reúne uma série de elementos que ainda carecem de uma avaliação de conjunto mais sistemática. Entretanto, um deles merece maior atenção, principalmente depois da divulgação do conteúdo das mensagens de deputados e senadores bolsonaristas que deram ensejo para investigações sobre a realização de atos antidemocráticos. Não se trata propriamente de analisar a opinião dos políticos e das pessoas envolvidas no ato, mas de discutir aquilo que as iniciou.

É claro que a condução no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) de inquéritos que investigam os apoiadores do Presidente, em alguns casos com fraca fundamentação jurídica, é um componente da polarização política atual. Na medida em que pessoas se sentem injustiçadas ou perseguidas politicamente, com razão ou não, a tendência para que apelem para soluções políticas extremas ou ilegítimas aumenta. Porém, não se pode isentar de culpa a retórica adotada pelo mandatário da nação desde o início da presente crise. Os sucessivos ultimatos de Jair Bolsonaro não devem ser ignorados simplesmente porque não se materializam em ação real. Ao contrário, merecem atenção da sociedade e a devida condenação.

A primeira vez que o Presidente subiu o tom acima dos limites em que vinha operando desde então foi quando o STF suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagen, no âmbito do inquérito que investiga suposta interferência política de Bolsonaro na PF. No dia 3 de maio, diante de uma manifestação de apoiadores no Palácio do Planalto, Bolsonaro afirmou: “Chegamos no limite. Não tem mais conversa. Faremos cumprir a Constituição. Não tem uma mão só.  Nesta semana vamos nomear o diretor da PF [Polícia Federal]”. A declaração foi transmitida pelas redes sociais do Presidente, provocando alvoroço entre apoiadores e notas de repúdio da parte das instituições. O que parecia sinalizar para um ato de desobediência, porém, logo se mostrou sem efeito, com o Presidente reiterando em seguida o respeito aos Poderes estabelecidos e desistindo da nomeação de seu indicado.

Em seguida, foi a vez do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) aderir à linguagem do ultimato. Em nota divulgada publicamente no dia 22 de maio, em resposta ao encaminhamento do ministro Celso de Mello à Procuradoria Geral da República (PGR), pedidos em que partidos e parlamentares solicitavam, entre outras coisas, a apreensão do celular do Presidente. A nota se referia à apreensão do celular de Bolsonaro como “inconcebível” e alertava para “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. Após a reação de várias instituições à publicação, integrantes do governo adotaram um tom de conciliação temporário, referindo-se a outro sentido que não o de ruptura iminente.

Porém, poucos dias depois, Bolsonaro voltaria a subir o tom mais vezes. No dia 28, após a primeira operação de busca e apreensão no âmbito do inquérito das fake news, quando apoiadores do presidente foram alvos de mandado, novo aviso em tom de ultimato. Em frente à residência oficial do Palácio da Alvorada, disse novamente que “as coisas têm um limite”. Em seguida, complementou, em tom mais exaltado: “Acabou, po**a! Me desculpem o desabafo. Acabou! Não dá para admitir mais atitudes de certas pessoas individuais, tomando de forma quase que pessoal certas ações.” No mesmo dia, o Presidente publicou vídeo em que o jurista Ives Gandra Martins defende a interpretação de que o Art. 142 autoriza as Forças Armadas a atuarem como Poder Moderador em caso de impasse entre os três Poderes ou de grave ameaça à Lei e à Ordem. Quatro dias depois, Bolsonaro apareceria ao lado do Ministro da Defesa, General Fernando Azevedo, em mais uma manifestação de apoiadores realizado em frente ao Planalto. Nesse ato, como já havia acontecido em anteriores, alguns manifestantes empunhavam cartazes em defesa do AI-5 e também pedindo por uma “intervenção militar constitucional”.

No último desses episódios, no dia 16 de junho, após mais uma série de ações do STF contra apoiadores do Presidente, dessa vez no âmbito das investigações sobre a realização de “atos antidemocráticos”, Bolsonaro publicou uma extensa mensagem no seu perfil oficial do Twitter, que foi lida por muita gente como uma declaração de guerra. O Presidente afirmou que “não houve, até agora, nenhuma medida que demonstre qualquer tipo de apreço nosso ao autoritarismo, muito pelo contrário”. Em seguida, depois de exibir méritos do seu governo e dissertar sobre uma “longa série de abusos” a que vinha sendo submetido, Bolsonaro afirmou que não poderia “assistir calado enquanto direitos são violados e ideias são perseguidas”. E completou: “Por isso, tomarei todas as medidas legais possíveis para proteger a Constituição e a liberdade dos brasileiros”. Na mesma noite e durante a madrugada, personalidades ligadas ao governo, como o assessor especial da Presidência Filipe G. Martins, e o deputado federal Hélio Lopes publicaram postagens com alusões de que algo marcante poderia acontecer no dia seguinte – “Tá na hora!”, “TIC-TAC” etc.

O episódio foi visto com apreensão na opinião pública e gerou algumas reações entusiasmadas entre apoiadores de Bolsonaro. No dia seguinte, nada aconteceu. Não houve mais nenhuma manifestação contundente do presidente, nem de seus apoiadores. As redes sociais bolsonaristas foram tomadas de súbita onda de desânimo e muitos deputados e figuras do governo foram cobrados nas suas contas nas redes sociais. Dois dias depois do novo ultimato presidencial, Filipe G. Martins publicou uma longa thread (encadeamento de várias mensagens curtas nas redes sociais) explicando que “governos não são tão coesos quanto gostaríamos e uma ação pode ser abortada ou se tornar malsucedida por isso”. Em seguida, instou ao movimento conservador a parar de se organizar de modo a exercer pressão efetiva sobre as decisões do governo.

Ainda que as notícias dos últimos dias apontem para uma aparente disposição de pacificação do Governo Federal, essa série de episódios não pode passar em branco. Não se sabe ao certo a natureza daquilo que era debatido nos corredores palacianos quando da sua proclamação. Isto é, ainda não há informações seguras para saber se não passaram de blefe ou se ações mais contundentes estavam de fato previstas e foram abortadas por quaisquer razões. O fato é que esses eventos ajudaram, durante os últimos meses, a operar certo deslocamento na janela das opiniões politicamente aceitáveis em parcela da sociedade brasileira, que podem ter se refletido nos ânimos mais exaltados nas redes sociais e nos protestos de apoiadores do presidente. Longe de compor simples demonstrações de bravata, os sucessivos ultimatos têm colocado as instituições em tensão permanente e contribuído para exacerbar os conflitos existentes.

De certo modo, essa metodologia de enfrentamento demonstra certa incapacidade de Bolsonaro e seu entorno em operar dentro dos parâmetros constitucionais estabelecidos para a resolução de disputas entre os Poderes. Decisões do Supremo podem ser objeto de recurso ao Plenário da Corte e até os ministros são passíveis de processo de impeachment no Senado, conforme estabelecido na nossa lei maior. Todas essas medidas podem ser adotadas ou pedidas pela Presidência da República ou pelos deputados de sua base sem que para isso seja necessária a adoção de nenhuma retórica direta ou tangencialmente golpista ou de ameaça às instituições. Certas ou erradas, eficazes ou não, medidas como essas fazem parte do arcabouço de freios e contrapesos previsto na Carta Magna para controlar excessos e resolver impasses. Quando se opta constantemente pela retórica do ultimato em vez do recurso a medidas de natureza legal, o recado que fica para a sociedade é o de esforço constante para fazer valer a ameaça. E o próprio fato de o país se acostumar a esse tipo de avanço sem uma reação mais contundente compõe a intrincada circunstância para que ela se realize na prática.

A convicção de que a democracia e a convivência democrática são valores superiores aos muitos valores que possam estar sendo feridos por políticos, magistrados ou seja quem for é uma das grandes conquistas da civilização ocidental. E isso porque a experiência histórica também demonstra que apenas dentro dessa moldura democrática é possível, no tempo, combater as agressões aos demais valores. Urge, portanto, encerrar qualquer retórica, por mais indignado que se possa estar, que fuja dessa lógica.

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