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Dez anos depois de uma tentativa – felizmente frustrada – de realizar a toque de caixa uma reforma absurda do Código Penal, o tema está de volta ao Congresso Nacional. O Projeto de Lei 236/2012 acaba de ganhar novo relator, o senador Fabiano Contarato (PT-ES), que promete “diálogo democrático”, aproveitando “contribuições as mais divergentes” e sua experiência como ex-delegado da Polícia Civil e professor universitário na área de Direito Penal e Processo Penal. Mas consertar o PL 236 é trabalho que deve exigir muito mais que isso, a começar por bom senso, item que esteve totalmente ausente na gênese do projeto.
O PL 236/2012 é cria dos ex-senadores José Sarney e Pedro Taques; em 2011, este solicitou, e aquele (então presidente do Senado) instalou uma comissão de juristas para redigir uma reforma do Código Penal. O resultado final foi tão absurdo que o jurista Miguel Reale Júnior o classificou como “obscenidade” que “não tem conserto”. Tratava-se de uma peça nitidamente influenciada mais por ideologia que por um autêntico senso de justiça, e que batia de frente com as convicções mais arraigadas do brasileiro. A versão inicial, por exemplo, pretendia descriminalizar totalmente o plantio, compra e porte de qualquer droga para uso próprio; legalizava o aborto em qualquer caso até a 12.ª semana de gestação (o que chegou a ser mencionado com orgulho pelo relator da comissão); e não tinha o menor senso de proporcionalidade na atribuição de penas – um caso escandaloso era o da pena por “deixar de socorrer crianças, inválidos ou feridos” (1 a 6 meses de prisão, ou multa), muito menor que a punição por “deixar de socorrer animais” (1 a 4 anos, a mesma pena para abandono de animais).
É preciso que os responsáveis pelas novas versões do PL 236 estejam guiados por convicções saudáveis para que saibam tanto definir corretamente o que deve ou não deve ser criminalizado quanto dosar corretamente as penas para evitar desproporções
Sarney queria que o Senado aprovasse o projeto o mais rapidamente possível, mas o próprio Taques, designado relator do PL 236, afirmou que não havia como analisar brevemente um texto tão complexo e desacelerou bastante a tramitação, oferecendo relatórios que, ao menos em alguns pontos mais controversos, amenizava muito (embora não eliminasse completamente) algumas das novidades desejadas pela comissão de juristas. A depuração inicial realizada por Taques foi aprofundada por uma comissão especial de senadores; com a aprovação, o texto foi para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), onde ficou parado desde então e chegou a ter como relator o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que deixou o posto ao se tornar presidente da casa legislativa.
Há sérias razões para acreditar que seja impossível simplesmente remendar um texto que nasceu tão enviesado, já que boa parte dele é movida por um nítido desprezo pela vida humana; sem corrigir o erro de fundo, ele continuará perpassando o projeto, por mais atento que seja o pente-fino que pretenda corrigir as distorções pontuais. É preciso que os responsáveis pelas novas versões do PL 236 estejam guiados por convicções saudáveis, como o respeito pela dignidade da vida humana em todas as suas dimensões, para que saibam tanto definir corretamente o que deve ou não deve ser criminalizado quanto dosar corretamente as penas para evitar desproporções como aquela que valorizava mais a vida dos animais que a vida de humanos vulneráveis como crianças e inválidos.
A lei penal reflete o conjunto de valores de uma sociedade, que por meio de seus representantes define os comportamentos que deseja coibir não apenas por meio da reprovação moral, mas por meio da força legal. É, portanto, tema importantíssimo, ao menos do mesmo nível que as grandes reformas macroeconômicas. Sua revisão é algo que exige discernimento profundo da parte de quem a realiza e fiscalização atenta da sociedade, que não pode aceitar uma tramitação veloz, irrefletida ou pouco transparente.