Em setembro, os deputados que faziam parte do grupo de trabalho encarregado de analisar o pacote anticrime de Sergio Moro, ministro da Justiça, e as propostas de Alexandre de Moraes, ministro do STF, resolveram incluir no texto a figura do “juiz de garantias”: um magistrado que atuaria na fase de instrução do processo e coleta de provas – seria ele, por exemplo, que autorizaria uma interceptação telefônica, ou ordenaria uma busca e apreensão; uma vez aceita a denúncia, o julgamento propriamente dito caberia a outro juiz. A mudança passou pela comissão especial, pelos plenários da Câmara e do Senado e foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, apesar da oposição de Moro.
A novidade deveria entrar em vigor na última quinta-feira, dia 23, mas na semana anterior o presidente do Supremo, Dias Toffoli, concedeu liminar suspendendo a implantação do juiz de garantias por 180 dias. Mesmo sendo favorável à figura e admitindo sua constitucionalidade, Toffoli quis aguardar o resultado de um grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre o tema. Segundo Toffoli, não era “razoável” nem “factível” que todo o Judiciário brasileiro conseguisse implantar o juiz de garantias em apenas 30 dias. E, no último dia 22, o ministro Luiz Fux, vice-presidente da corte e que assumiu o plantão judiciário no lugar de Toffoli, foi além e barrou o juiz de garantias por tempo indeterminado, considerando-o inconstitucional. Fux é o relator das ações propostas por partidos políticos e entidades de magistrados no STF contra este trecho do pacote anticrime.
A implantação do juiz de garantias exigiria mudanças muito mais profundas no Código de Processo Penal, e não apenas as que o Congresso aprovou no pacote anticrime
A liminar de Toffoli já tinha uma série de acertos. Por exemplo, esclarecia casos em que não se aplicaria o juiz de garantias, e suspendia uma regra específica da lei, segundo a qual o juiz que tomasse ciência do conteúdo de uma prova inadmissível não poderia proferir sentença ou acórdão – para Toffoli, o texto não foi escrito com clareza suficiente, e foi criticado por parlamentares alinhados com a Operação Lava Jato. Fux, no entanto, apontou ainda outros problemas em sua liminar, e que também merecem consideração atenta.
Independentemente de qualquer questão orçamentária e da possibilidade de se implantar o juiz de garantias com o quadro atual da magistratura – o que parece extremamente complicado, exigindo gastos adicionais que o legislador não contemplou –, o fato é que todo o processo penal brasileiro foi desenhado tendo em mente o mesmo juiz atuando desde a coleta de provas até o momento de se proferir a sentença. A implantação do juiz de garantias, portanto, exigiria mudanças muito mais profundas no Código de Processo Penal, e não apenas as que o Congresso aprovou no pacote anticrime. Sem tais alterações, o risco de conflito e judicialização é enorme. “A criação do juiz das garantias não apenas reforma, mas refunda o processo penal brasileiro e altera direta e estruturalmente o funcionamento de qualquer unidade judiciária criminal do país”, afirma Fux na liminar, acrescentando que o legislador deixou lacunas tão grandes no texto do pacote anticrime “que o próprio Poder Judiciário sequer sabe como as novas medidas deverão ser adequadamente implantadas”.
Fux também enfrentou o argumento de que o juiz de garantias é figura presente nos sistemas de Justiça de várias democracias ocidentais, como Alemanha, Portugal e Itália, e mostrou que o simples transplante de um modelo de um país para outro não é tão simples. O ministro afirma que, em algumas das nações que usam o juiz de garantias, esse magistrado tem funções que seriam “inimagináveis no sistema brasileiro”. As funções do Ministério Público e de outros órgãos de investigação também são diferentes nesses países. Em resumo: a implementação do juiz de garantias tem potenciais consequências também sobre o funcionamento de outras instituições, cujas competências estão inclusive inscritas na Constituição.
- O juiz de garantias e o guizo do gato (artigo de André Gonçalves Fernandes, publicado em 20 de janeiro de 2020)
- Juiz de garantias: embora possível, constitucionalmente irrazoável (artigo de Sebastião Ventura, publicado em 14 de janeiro de 2020)
- O cavalo de Troia no pacote anticrime (artigo de Bruno Carpes e Edilson Bonfim, publicado em 17 de dezembro de 2019)
Fux faz uma avaliação bastante precisa sobre o juiz de garantias e sobre o terremoto que sua adoção provoca no processo penal brasileiro. Mas, ainda que a sua liminar possa ser mais abrangente e mais bem fundamentada que a de Toffoli, ainda que realmente o juiz de garantias, da forma como aprovado pelo Congresso, seja inconstitucional como Fux acredita ser, era desnecessário publicar uma nova liminar. Esse trecho do pacote anticrime já estava suspenso por um prazo bastante razoável; não era preciso trocar uma decisão provisória por outra igualmente provisória, causando um tumulto com repercussão muito negativa entre parlamentares e mesmo entre colegas de STF. Sendo Fux o relator das ações, muito melhor seria que ele simplesmente não interferisse na liminar de Toffoli e trabalhasse para deixar pronto o seu relatório, expondo todos os argumentos pela inconstitucionalidade, para que o tema seja julgado pelo plenário o quanto antes.
Decidir se o Brasil terá ou não um juiz de garantias é função do Congresso, não do Supremo. Mas a forma como essa figura entrou no ordenamento jurídico nacional foi tão atabalhoada que até mesmo Toffoli, um defensor da medida, teve de intervir com uma suspensão que faz todo o sentido. Agora, o que cabe à corte é decidir se a introdução do juiz de garantias ocorreu em conformidade com a Constituição, e apontar conflitos importantes decorrentes do fato de o Legislativo ter aprovado uma lei cheia de lacunas. Que o plenário do Supremo possa analisar o tema logo que retornar do recesso, para minimizar o caos que uma mudança tão radical deve trazer à Justiça criminal.