Diante de uma tragédia como a do massacre de Suzano (SP), a reação imediata e necessária é solidarizar-se com as famílias das vítimas – os dois atiradores mataram oito pessoas: cinco alunos e dois funcionários da Escola Estadual Raul Brasil, e um comerciante, tio de um dos assassinos, além de ferir outras dez. Mas, além do luto, a sociedade também pode – até deve – se perguntar: “por quê?” Como é possível que dois jovens entrem em uma escola, disparem a esmo contra pessoas que mal conhecem, matando inclusive um parente, e depois tirem a própria vida? Como um ato que a maioria esmagadora das pessoas consideraria impensável vai se tornando, na mente de alguém, algo não tão absurdo assim, para depois entrar no campo das possibilidades reais e, por fim, ser encarado como algo que deve ser feito, algo moralmente defensável, desejável, louvável?
Para fazer esse tipo de pergunta, no entanto, é preciso, em primeiro lugar, aceitar a responsabilidade individual dos assassinos. Excetuando-se qualquer surto psicótico em que a pessoa perde controle sobre seus atos, temos de reconhecer que os responsáveis agiram livremente, a ponto de premeditar e planejar o ataque. A minimização da responsabilidade individual chegou ao auge com certa sociologia que trata criminosos como “vítimas” de uma “sociedade” sempre descrita de modo abstrato, pessoas empurradas para o crime por circunstâncias como a pobreza – um verdadeiro insulto à enorme maioria de pobres que lutam diariamente e de forma honesta para colocar o pão na mesa de suas famílias.
Muito antes do bullying, da deep web e dos jogos de computador, havia uma família profundamente fraturada
Mas há circunstâncias – inclusive a própria pobreza, não o negamos – que facilitam ou incentivam certas decisões individuais livres, que talvez não fossem tomadas em outros casos. Já se sabe que pelo menos um dos atiradores de Suzano sofreu bullying na escola – elemento que também esteve presente em outros casos em que adolescentes e jovens promoveram massacres semelhantes. A dupla também estava envolvida com fóruns na chamada “deep web” (o “submundo da internet”) que celebram o ódio, e cujos membros forneceram informações para ajudar no planejamento do ataque.
A história de um dos assassinos mostra que, muito antes do bullying, muito antes da deep web (cujas redes a inteligência policial precisa desarticular o quanto antes), muito antes dos jogos de computador em que eles consumiam boa parte do tempo livre, havia uma família profundamente fraturada. O relato da mãe do adolescente de 17 anos, ela mesma lutando para se recuperar da dependência química que a faz passar muito tempo na rua, mostra que ele nasceu de um relacionamento rápido, sendo criado pelos avós em um ambiente no qual nunca houve muito diálogo com pai e mãe. Não era um lar pobre: o adolescente “tinha internet, TV a cabo, tinha tudo”, descreveu a mãe; o avô chegou a pagar um tratamento dermatológico para resolver o problema de acne que havia feito do jovem alvo das gozações na escola.
Quando uma criança cresce em um ambiente instável, quando lhe faltam bons referenciais tanto masculinos quanto femininos – especialmente na pessoa do pai e da mãe –, quando ela cresce sem ser apresentada àquilo que é bom, belo e verdadeiro, sem ser estimulada a buscar a excelência na virtude, quando falta uma comunidade vibrante, disposta a ajudar as famílias em dificuldades, jovens e adolescentes estarão mais vulneráveis a males sociais como o vício e a violência. “As crianças que crescem sem um pai têm cinco vezes mais chances de viver na pobreza e cometer crime; nove vezes mais chances de abandonar a escola e 20 vezes mais chances de parar na prisão”, disse, em 2008, o então candidato à presidência dos Estados Unidos Barack Obama.
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Nossas convicções: O valor da família
É evidente que uma família desestruturada não sentencia ninguém a uma vida de vulnerabilidade social ou de crime. Pensar assim seria justamente negar o papel da liberdade humana e a capacidade de superar as dificuldades para ter uma vida digna. O próprio Obama cresceu sem o pai desde os 2 anos. Assim como a maioria dos pobres vive honestamente e a maioria das vítimas de bullying supera os episódios sem recorrer à vingança, a maioria das crianças que crescem em famílias desestruturadas jamais verá a violência como um ideal a buscar. E, se nem por isso deixamos de combater a pobreza e práticas como o bullying, também não deveríamos fugir do desafio de defender a família e lutar pela sua promoção, pois famílias fortes constroem sociedades fortes.
Temos de recuperar as iniciativas que promovem a convivência saudável entre pais e filhos, temos de fazer das comunidades uma rede de proteção às famílias que estão em situação vulnerável, temos de incentivar relações sólidas e duradouras, que não se desfazem na primeira dificuldade. Sabemos que nem sempre isso é possível, especialmente quando se vive imerso em uma cultura que valoriza muito pouco o compromisso, ou diante de circunstâncias como a violência doméstica, em que a separação dos membros da família é uma necessidade para a proteção dos mais fracos. Temos de compreender essas situações, mas não podemos, de forma alguma, fingir que a desagregação da família não tem relação alguma com outras mazelas sociais, como a violência que deixou tantas vítimas nesta semana, em Suzano.