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“Ouvimos (Sergei Lavrov, ministro do Exterior russo) repetir que eles não têm intenção de invadir a Ucrânia, mas há coisas que todos nós vemos”, afirmou Anthony Blinken, o secretário de Estado norte-americano, nesta sexta-feira, após reunião com seu equivalente russo em Genebra, na Suíça. As “coisas que todos nós vemos”, no caso, são o reforço massivo de tropas russas nas proximidades da fronteira com a Ucrânia, reforçando ainda mais a possibilidade de uma invasão terrestre. A embaixada norte-americana em Kiev pediu ao Departamento de Estado que autorize a saída de todos os funcionários não essenciais e suas famílias; o governo já pediu que cidadãos norte-americanos evitem viagens à Ucrânia. Há informações de que os russos também estariam esvaziando suas representações diplomáticas em Kiev e outras cidades ucranianas.
A comunidade ocidental ainda está incerta sobre os reais planos de Vladimir Putin; as possibilidades vão desde uma pressão sobre o ocidente sem uma verdadeira intenção de invadir a Ucrânia, até um cenário já mencionado por autoridades segundo o qual a Rússia avançaria suas tropas até Kiev para derrubar o governo ucraniano. Entre esses extremos, há a hipótese de uma invasão apenas no leste do país para estabelecer uma ligação terrestre entre a Rússia e a península da Crimeia, anexada por Putin em 2014. Há uma semana, surgiu a informação, levantada pela inteligência norte-americana, de que os russos preparavam uma ação para simular um falso ataque ucraniano, que seria usado como justificativa para a invasão.
O ocidente precisaria estar disposto a responder sem hesitação com sanções drásticas – e isso inclui as potências europeias que dependem das commodities russas para suprir sua demanda de energia
Putin sabe que muitas de suas exigências não têm como ser atendidas. O autocrata russo gostaria de ver a Otan bem longe não apenas de suas fronteiras, mas também de qualquer país sobre o qual a Rússia queira exercer influência. A Otan já deixou claro que não retirará tropas da Romênia e da Bulgária, que integram a aliança militar há quase 15 anos, e que não há como se comprometer em não incluir outros países, entre os quais a própria Ucrânia. Quando invadiu e anexou a Crimeia, Putin gerou comoção internacional, mas no fim das contas conseguiu escapar relativamente impune da agressão. Estaria ele convencido de que poderia fazer o mesmo com um pedaço de terra ainda maior?
A resposta depende da real disposição das democracias ocidentais em responder às agressões e defender as populações atacadas. O sírio Bashar al-Assad cruzou várias “linhas vermelhas” estabelecidas pela administração Obama durante a guerra civil síria, inclusive com o uso de armas químicas contra sua população, e recebeu em troca apenas ataques pontuais. A China desrespeita abertamente o acordo feito com o Reino Unido quando da devolução de Hong Kong, elimina as liberdades democráticas na região, e segue impune. Esses precedentes, que também incluem a desastrada retirada norte-americana do Afeganistão, poderiam levar Putin a acreditar que, mais uma vez, a comunidade internacional reagiria com indignação, mas não muito mais que isso.
Por isso, o ocidente precisaria estar disposto a responder sem hesitação – e isso inclui as potências europeias que dependem das commodities russas para suprir sua demanda de energia. Um confronto aberto entre tropas russas e norte-americanas ou europeias teria consequências inimagináveis, e nem a Otan trabalha com essa possibilidade, preferindo ajudar os ucranianos com armas e inteligência. Por isso, a aplicação imediata de sanções drásticas aparece como a primeira alternativa em caso de invasão; se houver a menor hesitação da parte de algum dos parceiros ocidentais, Putin farejará a fraqueza.
No entanto, a não ser que esteja completamente cego, o russo também sabe que, por mais que suas tropas sejam superiores, a Ucrânia não seria um adversário qualquer e poderia se transformar em um atoleiro ainda maior que a Chechênia, uma campanha militar cujas cicatrizes estão até hoje abertas na sociedade russa. A opinião pública do país não tem o menor entusiasmo por uma invasão da Ucrânia; uma guerra sangrenta e as sanções ocidentais poderiam muito bem levar a um desfecho que anos de oposição democrática não conseguiram: o fim do regime autocrático de Putin.
A história recente mostra que, mesmo quando tudo parece indicar que a guerra é inevitável, a distensão é possível – o melhor exemplo é o da crise dos mísseis cubanos, em 1962. Se o “ponto de não retorno” ainda não chegou para a Rússia, todo esforço diplomático para frear Putin é válido e poderia incluir algumas poucas concessões menores que lhe permitam, ao mesmo tempo, recuar e cantar vitória internamente. Mas este esforço de entendimento não pode ser levado adiante de modo que Putin o leia como sinal de que, mais à frente, ele poderia voltar à ofensiva; a comunidade ocidental precisa deixar muito claro que protegerá a Ucrânia em caso de nova escalada.