Em seus escritos, a psicóloga e consultora educacional Rosely Sayão costuma dizer que a mais difícil das tarefas é educar para a vida pública. O alerta vale para pais, educadores, empresários, religiosos – todo e qualquer um que tenha seu quinhão na tarefa de ensinar. Em geral esse debate recai sobre a escola, injustamente. Pertence a todos, do contrário resta o caos.
O alerta – por mais evidente que possa parecer – faz sentido. Uma das grandes crises da vida contemporânea, senão a maior, é o que o sociólogo e historiador norte-americano Richard Sennett cunhou como o declínio do homem público. Enredados pelos individualismos, hedonismos, consumismos – somados à palidez dos ideais modernos, a rigor mais coletivos – tendemos a uma miopia crescente, o que cada vez mais nos impede de enxergar para além dos limites do nosso quarto de dormir. O resultado não é só a hegemonia da esfera privada – é a sua tirania. Não por menos, diz-se, o desafio que deve nos mover é o de recuperar a capacidade de viver juntos.
Somos cidadãos de pequenas ilhas, pautados pelo agora, avessos ao amanhã
Em visita recente ao Brasil, outro sociólogo que bem traduz nosso tempo – o espanhol Manuel Castells –, referiu-se às manifestações raivosas dos brasileiros nas redes sociais. São reflexo da nossa inabilidade para a coisa pública. O atual estado das coisas parece contradizer a imagem cordial e tolerante que sempre tivemos de nós mesmos. Mas não para Castells, esse observador a distância. Seguindo a tendência de uma leva de analistas, o pesquisador entende que a internet não provoca reações, antes espelha e traduz aquilo que somos.
De fato, é como se de repente as barbaridades ditas e aceitas na cozinha das casas, entre parentes e conhecidos, ganhasse um megafone, mostrando-se sem vergonha e sem discernimento, o que outra coisa não é senão uma antessala da barbárie. Pode ser que todo esse novo mal-estar da civilização tenha alguma serventia, desde que seja seguido de um debate sobre que tipo de sociedade queremos, forjando a partir daí um novo pacto social. Não custa sonhar.
Educar para a vida pública é falar sobre a importância da praça e ir à praça, ocupá-la. É entender o problema da violência. É assumir que a participação social é oxigênio dos nossos dias – o que passa por ir às reuniões de condomínio, engajar-se em movimentos relevantes, tomar partido nos grandes embates – assumindo que a última palavra pode não ser a nossa. Nesses tempos de guerrilha verbal na internet, reina a “trolagem” – palavra inventada para traduzir grupos que não aceitam a discordância e a combatem com golpes baixos. Não são tempos agradáveis. Só há uma explicação para esse movimento destrutivo – nós nos tornamos mimados e mal preparados para lidar com pontos de vista díspares. Estamos carentes de traquejo para as exigências da vida pública. Hora de reagir, e reagir em conjunto. Utopia?
É fato que a questão tem mais complicadores, e que esses complicadores não se diluem diante de um belo discurso sobre a civilidade. Vivemos tempos fraturados, sob o domínio de tantas cabeças e sentenças, cada uma defendendo sua vontade, como se fosse possível tamanha conciliação de vaidades. Ao contrário do ideário moderno – que buscava um modelo possível de mundo em que todos se viam parte e não expoentes – vigora, cada vez mais, uma prática presentificada e ensimesmada. Somos cidadãos de pequenas ilhas, pautados pelo agora, avessos ao amanhã.
Feito esse diagnóstico, resta dizer que nesses inícios de século 21, a palavra de ordem é resgatar a possibilidade de falar a mesma língua, de modo a projetar um destino comum. A isso se chama política, no melhor sentido da palavra. A escola utilitária, a empresa insensível, a religião alienante, a família omissa em nada contribuem para a consolidação da comunidade. E que aqui comunidade seja entendida como aquele lugar em que a boa palavra é curtida, eivada de valores e ponderações, de modo a virar ação. Se for leve em demasia, o vento a leva. É o que se tem visto em meio a tanto vazio. Castells tem razão – a rede não tem a culpa, tem é o espelho no qual nos miramos.
Por ironia, ninguém melhor para nos ensinar do que os gregos. Vale recorrer de novo a Richard Sennett. No magnífico ensaio Carne e pedra ele frisa a crença na antiguidade de que somos mais inteligentes e mais saudáveis quando estamos em público. O homem na ágora – declamando poesia – ou na arena de esportes era o homem em plenitude do espírito. É na cidade, na interação com os outros, que o melhor de cada um emerge. Essa lição cruzou séculos e nada tem de crendice. Praticá-la é sabedoria – tem sua dose de dor, mas é nossa garantia de que a humanidade vai prevalecer.
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