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Editorial

A Vale privatizada e a função estatal

 | Ricardo Stuckert/Fotos Públicas
(Foto: Ricardo Stuckert/Fotos Públicas)

A tragédia de Brumadinho, onde uma barragem da Vale se rompeu, causando morte e destruição, deu margem a críticas à privatização de empresas estatais, na esteira do fato de que a Vale nasceu como estatal, tornou-se gigante e foi privatizada em 1997, ainda sob o nome de Companhia Vale do Rio Doce, e já com uma história de sucesso – uma privatização um tanto atípica, é verdade, já que o governo continou exercendo influência na empresa por meio do BNDESPar, do fundo de pensão Previ e de suas golden shares, a ponto de a pressão do ex-presidente Lula ter resultado na saída de Roger Agnelli, em 2011. A Vale é uma das maiores empresas de mineração do mundo e a maior produtora de minério de ferro, níquel e pelotas, além de ser grande também na produção de manganês, cobre, bauxita, potássio, alumínio e outros minerais. Aqueles que são ideologicamente contra qualquer privatização de empresa estatal rapidamente usaram a tragédia para defender a estatização, como se o setor público não fosse ele próprio trágico.

Tudo deve ser investigado, periciado com ciência e inteligência, e a empresa deve arcar com todas as consequências do desastre, além de ser punida com todo o rigor da lei caso se verifiquem ilegalidades ou descumprimento de normas técnicas compulsórias. Mas eventual gritaria contra a privatização deve ser rechaçada por várias razões. Primeiro, porque a economia nacional tem, e deve ter, a maior parte de sua atividade de produzir nas mãos do setor privado. Ao governo cabe, além da segurança pública, da defesa nacional, da justiça e da prestação de serviços essenciais, socorrer a sociedade de forma subsidiária, tomando para si apenas aquelas funções que os entes abaixo dele não conseguem ou não querem executar.

Se o desastre aconteceu, ou a regulamentação é ruim, ou a empresa descumpriu normas

O setor privado não é composto de anjos nem tem o dom da perfeição, mas precisa exercer sua atividade pensando no bem comum, o que também inclui a dimensão da responsabilidade social, hoje abraçada por cada vez mais empresas, cientes de seu papel na sociedade. Os problemas que eventualmente existam no setor privado, no entanto, não podem servir de pretexto para se colocar certas atividades sob o guarda-chuva do poder público, até porque também ele tem suas limitações. Outra razão para rejeição à ideia de estatização de indústrias é que ao governo compete agir para reduzir as deficiências e imperfeições do setor privado, bem como as imperfeições do próprio Estado, por meio de três tarefas: tributar, regular e fiscalizar. O Estado brasileiro retira, em termos efetivos, um terço de toda a renda nacional em forma de tributos, tem a responsabilidade constitucional de fazer leis e normas para regulamentar atividades produtivas, privadas ou estatais, e deve realizar a fiscalização sobre pessoas e empresas. Aos eventuais transgressores deve ser aplicado o rigor da lei, e os culpados devem ser punidos civil e criminalmente.

Longe de isentar previamente a mineradora de responder por seus atos nos termos de apuração eficiente que venha a ser feita, o que emergiu logo após o desastre de Brumadinho é a constatação de que o Estado brasileiro regula mal e fiscaliza pior, sendo ele próprio o responsável por várias barragens em situação de risco – relatório da Agência Nacional de Águas (ANA) sobre dados de 2017 revelou que ao menos 45 barragens do Brasil estão vulneráveis e podem apresentar risco de rompimento, sendo que 25 delas (mais da metade) são de responsabilidade do poder público. Logo, se há algo que não se pode afirmar é que, se a Vale fosse uma empresa estatal, a tragédia não teria ocorrido. 

Os reservatórios de Brumadinho tinham classificação de “baixo risco” para a possibilidade de haver algum desastre e rompimento da estrutura. Se ainda assim o desastre aconteceu, ou é porque a regulamentação é ruim, ou porque a empresa descumpriu as normas técnicas contidas na regulamentação. Que essa tragédia, lamentável por todos os aspectos, sirva para o país reexaminar todas as normas regulamentares e rever os padrões técnicos de construção e manutenção, além de realizar apuração mais eficiente e no menor tempo possível para identificar falhas e responsáveis, punir culpados e, principalmente, atender as famílias e proceder às indenizações. 

Ninguém deve ser isentado de sua parcela de culpa, responsabilidade e obrigação de mudar comportamentos e posturas, mesmo que a nova realidade custe dinheiro e reduza o lucro da atividade. O país não pode negligenciar os cuidados com as exigências científicas da questão do meio ambiente e da segurança dos processos produtivos. Os danos ambientais e as tragédias humanas são condicionantes com as quais não se pode negociar. As informações indicam que o setor público está fazendo muito mal seu papel. Faltam fiscais, há alta rotatividade de técnicos, havia apenas 154 funcionários para fiscalizar todas as barragens do país e nove estados não fizeram nenhuma ação de fiscalização em todo o ano de 2017, sendo que apenas 3% das barragens cadastradas foram vistoriadas pelos órgãos fiscalizadores.

A função do governo é regular com boas normas, fiscalizar com eficiência e punir exemplarmente os violadores das leis e normas oficiais, mas não é função de governo ser dono ou responsável por barragens, mesmo porque isso não é garantia de segurança absoluta. Por fim, se a empresa agiu mal e descumpriu os regulamentos, ela tem de ser punida com rigor e com urgência. Se o governo fiscalizou mal, ele também deve ser punido por omissão de suas obrigações. É preciso repensar a qualidade da função estatal.

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