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Editorial

A verdade sobre a Lava Jato

Lava Jato
Manifestação a favor da Lava Jato, em 2015: apoio dos lavajatistas em 2022 já não será tão crucial nas urnas como foi em 2018. (Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo/Aqruivo)

Uma das páginas mais tristes da história do país está terminando de ser escrita, sob o olhar, de um lado, atônito e perplexo de alguns e, de outro, desatento de uma multidão de espectadores. Imensamente triste porque é a refação, é o apagar e reescrever, de uma página de especial beleza, portadora de uma história de coragem e talento que empolgou e deu esperanças à quase totalidade dos brasileiros. Referimo-nos, obviamente, à história da Operação Lava Jato.

A desconstrução midiática e jurídica da mais bem-sucedida operação de combate à corrupção da história do Brasil entrou em uma fase aguda. Princípios básicos do direito e garantias constitucionais estão sendo ignorados para que o trabalho da Lava Jato seja posto a perder e seus protagonistas sejam transformados nos vilões da história. Um movimento que foi iniciado com narrativas vitimistas, com avaliações desequilibradas, com confusões sutilmente implantadas no seio da opinião pública pelos detratores da operação, e que recorreu até mesmo ao crime puro e simples, como na invasão de celulares das autoridades que conduziram a Lava Jato.

Na inversão de valores em curso, usa-se a mera opinião ou preferência como o critério para se decidir o que é abusivo ou mesmo ilegal na Lava Jato

Mas como é possível que tal movimento esteja tendo sucesso? Como tem sido possível tamanha inversão de valores? Como entender que méritos tão gigantescos estejam sendo tão ostensivamente distorcidos? Como compreender que algumas pessoas de bem tenham ido do louvor e gratidão à Lava Jato, passando pela dúvida e desconfiança, e, por fim, manifestando desapreço e desprezo pela operação?

A compreensão total passará necessariamente por uma recordação desses méritos, nunca suficientemente elogiados. O contraste entre a grandeza da realidade e a pequenez da versão que está se propagando facilita essa compreensão. Mas isso fica para um outro momento. Por ora, basta recordar que o que torna a Lava Jato tão notável não é somente a dimensão do escândalo que ela enfrentou, mas o fato de finalmente se romper um ciclo de impunidade que levou operações anteriores a naufragar, terminando em nulidade ou prescrição. Isso seria impossível sem as pessoas certas, empenhadas em combater a corrupção, nos locais certos, no momento certo e fazendo a coisa certa, não uma ou duas vezes, mas milhares de vezes, durante dias, meses e anos, o que foi reconhecido até mesmo internacionalmente, dado o volume de colaborações realizadas com autoridades estrangeiras, atestando a seriedade do trabalho.

E como se consegue desmontar um esquema de corrupção tão intrincado, envolvendo gente tão poderosa? Como se consegue levar tantos para a cadeia, quando a impunidade sempre foi a regra neste país? Em seu lamentável voto pela suspeição do ex-juiz Sergio Moro, o ministro do STF Gilmar Mendes disse que “não se combate o crime cometendo crimes”, afirmando (pois o ministro foi muito além da simples insinuação) que teriam sido cometidas ilegalidades ao longo desses sete anos desde que a Lava Jato foi deflagrada. A operação certamente trouxe novidades ao cenário do combate à corrupção no Brasil, tanto do ponto de vista legal – a Lava Jato foi a primeira operação a usar amplamente a delação premiada, objeto de lei sancionada em 2013 por Dilma Rousseff – quanto do ponto de vista de estratégias. E haverá quem pense ser humanamente impossível combater o crime de colarinho branco sem cruzar, ao menos um pouco, a linha que separa a legalidade da ilegalidade, para que os agentes da lei tenham alguma chance contra quem tudo pode ao não se julgar limitado pelas regras do jogo. Mas aqui temos de lançar um enfático “não” a quem quer imputar esses comportamentos à Lava Jato, seja aos procuradores ou policiais que realizaram as investigações, seja aos juízes que julgaram os casos da operação.

Aos adversários da Lava Jato, assim, restavam algumas poucas possibilidades se quisessem promover uma inversão de valores. Uma delas era fazer da mera opinião, da mera preferência, o critério para se decidir o que é abusivo ou mesmo ilegal. Os descontentes com determinada estratégia adotada pela força-tarefa, ou com alguma atitude dos magistrados que julgaram os réus da operação, não se limitam a demonstrar sua discordância reconhecendo que se está no campo das escolhas legítimas; eles desejavam e desejam impor a ideia de que aquilo que criticam na Lava Jato é imoral, “abusivo”, “excessivo” ou até mesmo contrário à lei.

Recorde-se, por exemplo, a crítica de Gilmar Mendes à proximidade entre a Lava Jato e a imprensa, que é apenas uma das dimensões da estratégia da operação em relação à opinião pública. Não nos referimos, obviamente, a vazamentos de informações – que a lei e os códigos internos do Ministério Público e da magistratura já vedam e que precisam ser diligentemente investigados –, mas à presença midiática frequente de alguns dos responsáveis pela operação, bem como às entrevistas coletivas concedidas a cada fase da Lava Jato.

A opção pela publicidade total dos atos da operação chamou a atenção por ser praticamente inédita, mas é completamente lícita dentro daquilo que se permite aos responsáveis pela investigação. O que os críticos chamam de “espetacularização” ou de “personalismo” é, na verdade, a intenção de manter a sociedade informada a respeito de cada passo da operação e sobre o funcionamento do enorme esquema de corrupção então desvendado. Esses críticos teriam de responder: onde está a irregularidade? Que lei ou código interno proíbe a força-tarefa de se comunicar com a sociedade da forma escolhida pela Lava Jato? Desde quando a transparência passou a ser um mal a combater?

Usar algumas poucas decisões controvertidas, dentre dezenas de milhares, para interpretar o todo é uma falácia construída para estigmatizar a Lava Jato, que deveria ser julgada pelo seu conjunto, e não por algumas poucas ações

Compreendemos quem, nestes casos, julgue ser melhor a ação mais discreta, que se dá exclusivamente nos autos, mas a opção contrária jamais – insista-se, jamais – poderia ser considerada ilegal, ou abusiva, ou excessiva; ambas são legítimas, e a escolha pode ser pautada por questões estratégicas. No caso, além da convicção de que era importante prestar contas aos brasileiros, a Lava Jato também intuiu que deveria conquistar o maior apoio popular possível, já antecipando os movimentos que ocorreriam para desmontar a operação, assim como ocorrera na Itália da Operação Mãos Limpas.

Algo similar, nessa mesma linha de mera preferência estratégica, reside na opção que a Lava Jato fez de buscar cooperação com inúmeros organismos públicos e da sociedade civil, nacionais e internacionais, como recomendam as experiências dos maiores especialistas em todo o mundo. A opinião torta e interessada dos advogados dos acusados, de que qualquer cooperação fora do canal oficial é ilegal, passou pouco a pouco a ser aceita acriticamente inclusive por meios de comunicação sérios e comprometidos com a luta contra a corrupção, sem se dar conta de que isso pode, no futuro, minar por completo o combate ao crime organizado de enormes proporções. Uma pena, deixe-se registrado aqui, que pessoas de bem, por serem avessas a essas estratégias de comunicação e de cooperação, tenham partido dessas discordâncias (que são legítimas) para, sem lógica alguma, chegar à conclusão de que havia irregularidades. Dessa forma, como inocentes úteis, sem distinguir uma coisa de outra, acabaram engrossando o coro dos que querem sepultar a Lava Jato.

Outro flanco escolhido pelos detratores da Lava Jato está na avaliação sobre determinadas ações ou decisões da força-tarefa ou da 13.ª Vara Federal de Curitiba. Aqui, é preciso lembrar que sete anos de trabalho incansável geraram uma infinitude de atos jurídicos e processuais – mais precisamente, na casa dos 60 mil, considerando-se o último balanço da operação, que resultou em 130 denúncias contra 533 acusados, com 278 condenações atingindo 174 pessoas. A esmagadora maioria desses atos foi convalidada pelas instâncias superiores do Judiciário, que não viram nenhuma razão para impugnar processos ou condenações devido a irregularidades processuais.

É evidente que, em conjunto tão monumental de atos, haja alguns mais controversos, especialmente quando se trata de navegar em águas ainda não mapeadas – falamos, aqui, de decisões que exigem interpretação da lei penal ou da lei processual, em uma zona cinzenta na qual os limites ainda não estavam perfeitamente delimitados. Mesmo quando a opção da Lava Jato foi a de usar as ferramentas mais rigorosas, não há como imputar a seus protagonistas nem a intenção dolosa, nem um comportamento abusivo recorrente. Trata-se de episódios pontuais em que as escolhas feitas, mesmo quando consideradas inadequadas a posteriori, se deram dentro da margem de discricionariedade permitida a investigadores ou julgadores, e jamais poderiam ser lidas como indicadores de algum animus persecutório ou condenatório, principalmente da parte de Sergio Moro (o juiz, aliás, absolveu um quinto dos réus, e ainda negou centenas de recursos do MPF, o que afasta a tese de um conluio entre Moro e a força-tarefa). Usar algumas poucas decisões controvertidas, dentre dezenas de milhares, para interpretar o todo é uma falácia construída para estigmatizar a operação, que deveria ser julgada pelo seu conjunto, e não por algumas poucas ações.

Na campanha contra a Lava Jato, primeiro transforma-se o acerto em erro, em “abuso”, em “excesso”, para depois avaliar-se o todo pela parte e, por fim, aplicar-se o golpe de misericórdia sobre procedimentos e reputações

O “desmonte moral” da Lava Jato, nesta operação que tenta transformar os verdadeiros bandidos em santos enquanto os investigadores e juízes terminam no banco dos réus, foi potencializado com o circo midiático da “Vaza Jato”, com a divulgação de mensagens atribuídas aos procuradores da força-tarefa e ao então juiz Moro. Embora a invasão dos aparelhos das autoridades seja um fato, nenhuma perícia foi capaz de verificar a autenticidade dos conteúdos divulgados; no entanto, isso não tem impedido seu uso indiscriminado em processos e recursos na Justiça, mesmo que seu valor como evidência nem tenha sido ainda devidamente estabelecido. Gilmar Mendes bem o sabe, e por isso afirmou que os diálogos nem seriam necessários para caracterizar a suspeição de Moro – o que não o impediu de, em flagrante contradição, citá-los longamente em seu voto da semana passada. Ocorre, no entanto, que o conteúdo divulgado, caso seja autêntico, mostra uma interação entre juiz e partes que foi considerada normal até mesmo por ministros do Supremo. “Mantemos diálogos com o MP. Nos 42 anos, mantive diálogo com membros do Ministério Público e advogados de qualquer das partes. Isso é normal”, afirmou Marco Aurélio Mello na semana passada, em entrevista ao jornal O Globo. Diagnóstico idêntico foi feito por inúmeros juristas desde que os supostos diálogos vieram a público, em meados de 2019.

Em resumo, qualquer adjetivo mais brando que “heroico” para descrever o trabalho da Lava Jato não lhe faria justiça. Procuradores, policiais e juízes gastaram até sete anos de suas vidas dedicados à missão de puxar até o último fio de um complexo novelo de corrupção, apesar das inúmeras forças que tentaram dificultar-lhes ao máximo esta tarefa. Usaram com inteligência todas as armas que a lei lhes facultava e tiveram diante de si escolhas difíceis naquilo em que havia margem para várias interpretações e linhas de atuação. E é justamente por terem funcionado, por terem rompido o ciclo clássico da impunidade, com resultados incomensuravelmente benéficos para o país, que essas escolhas e estratégias estão sob fogo cerrado no palco da opinião pública e nos tribunais, como se fossem elas mais escandalosas que o esquema desvendado. Primeiro transforma-se o acerto em erro, em “abuso”, em “excesso”, para depois avaliar-se o todo pela parte e, por fim, aplicar-se o golpe de misericórdia sobre procedimentos, dificultando-os ou proibindo-os, e sobre as reputações daqueles que tanto fizeram pelo país. Defender o legado da Lava Jato, injustamente vilipendiado, é crucial para que o Brasil siga sonhando com o fim da impunidade daqueles que insistem em sangrar o país em nome do próprio bem-estar ou de projetos de poder que fraudam a jovem democracia brasileira.

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