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| Foto: Nicholas Kamm/AFP

Mais de 300 jornais norte-americanos, desde os principais veículos do país, como o New York Times, o Miami Herald, o Chicago Tribune e o Boston Globe (responsável pela iniciativa), até pequenos jornais com tiragens que não ultrapassam os poucos milhares de exemplares, publicaram editoriais nesta quinta-feira em defesa da liberdade de imprensa no país. Tamanha mobilização em uma nação conhecida por ser um bastião das liberdades democráticas se explica porque o ataque vem justamente do homem mais poderoso do país: o presidente Donald Trump, que voltou a chamar a imprensa de “inimiga do povo”, uma expressão que já havia usado anteriormente.

De imediato, uma pergunta se impõe: a imprensa norte-americana não está realmente pegando muito pesado com Trump? A resposta exige, primeiro, que compreendamos que é absolutamente natural que veículos de imprensa tenham suas convicções a respeito de temas políticos, sociais, econômicos e morais. E não há dúvida de que, nos Estados Unidos, a maioria dos veículos e dos jornalistas tem um viés mais à esquerda, identificado com o Partido Democrata e com as plataformas que ele defende, a ponto de vários terem declarado apoio à candidatura de Hillary Clinton à Casa Branca, em 2016. Isso necessariamente refletirá em uma cobertura mais crítica do governo Trump, seja no noticiário factual, seja nos textos de opinião, como editoriais e artigos. Até aí, estamos diante do exercício mais puro da liberdade de imprensa e de expressão. Millôr Fernandes, para quem “imprensa é oposição; o resto são secos e molhados”, concordaria.

Mas o que fazer quando esse viés ideológico ou partidário leva a um olhar completamente equivocado sobre os acontecimentos, ou quando leva os jornalistas a cometer erros factuais na cobertura do governo de Donald Trump? Há exemplos de ambos os casos: no campo das ideias, houve análises, feitas no pós-vitória de Trump, em que jornalistas deixaram implícito que seu “erro” foi não perceberem o quão retrógrado podia ser o eleitor americano, ecoando o adjetivo “deploráveis” que Hillary usou durante a campanha de 2016 para se referir a parte do eleitorado de Trump. No campo factual, basta lembrar reportagens afirmando que o presidente havia chamado imigrantes de “animais”, quando ele estava se referindo especificamente a gangues salvadorenhas que usam métodos absurdamente cruéis contra suas vítimas.

Um dos “princípios fundadores” dos EUA é o de que ideias se combatem com ideias

Ora, se um veículo de informação divulga fatos errados, a correção tem de ser feita, de forma firme e, sobretudo, pontual: que fatos foram reportados incorretamente, e qual é a informação verdadeira? Uma vez estabelecida qual é a realidade, faz-se uma correção, e não se descarta o recurso à Justiça caso a informação tenha causado um dano a bens protegidos juridicamente, como a honra.

E quando se trata de uma opinião que se considera equivocada? Os Estados Unidos foram construídos não apenas sobre o trabalho de “pais fundadores”, mas também sobre um conjunto de “princípios fundadores”, e um deles é o de que ideias se combatem com ideias: o debate firme, mas respeitoso, é a melhor ferramenta para fazer brilhar as boas opiniões e mostrar por que outras estão erradas. A tradição norte-americana nunca condenou a difusão de ideias erradas, ou prejudiciais – essas sucumbiriam diante da força da contra-argumentação. O que sempre se buscou coibir foi a incivilidade na apresentação das opiniões, boas ou más. Incivilidade essa que agora vem da Casa Branca.

Trump não está interessado nem no esclarecimento de fatos reportados incorretamente, nem no debate de ideias: prefere desqualificar a imprensa como um todo, jogando o povo norte-americano contra ela, a ponto de uma pesquisa recente, citada pelo Boston Globe, descobrir que 48% dos republicanos e 29% dos americanos concordam com as afirmações de Trump, e uma porcentagem ligeiramente menor defende que o presidente possa fechar veículos de imprensa por “mau comportamento”. Ora, que diferença haveria entre isso e o que a ditadura de Hugo Chávez e Nicolás Maduro faz quando cassa concessões de televisão ou decida quais jornais podem importar papel?

Nossas convicções: Liberdade de expressão

Leia também: O novo ataque de Trump à imprensa (editorial de 25 de fevereiro de 2017)

A própria terminologia empregada por Trump deixa escapar esse viés antidemocrático. Ainda que a expressão “inimigo do povo” tenha origem na Antiguidade, ela foi amplamente usada pelos ditadores comunistas, que assim chamavam qualquer um que os incomodasse. O Código Penal soviético trazia, inclusive, a expressão “inimigo dos trabalhadores”, o que, no fundo, era a mesma coisa. Em muitos casos, bastava pertencer a certa classe social ou exercer determinada profissão antes do golpe bolchevique para se tornar “inimigo do povo”. No Brasil recente, Lula vem tratando a imprensa da mesma forma que Trump, desde quando estava no Planalto, com a divulgação do escândalo do mensalão, e especialmente depois que deixou a Presidência, à medida que a Operação Lava Jato cresceu e finalmente pegou o chefão petista.

Trump, Lula e qualquer um tem o direito de não gostar do que é publicado sobre si, e até de se sentir injustiçado – um sentimento que acaba compartilhado por quem concorda ou defende a autoridade ou personalidade criticada, e é por isso que muitas pessoas com valores sólidos de defesa das liberdades individuais acabam endossando a postura anti-imprensa de Trump, sem refletir sobre aonde esse discurso pode levar: na menos pior das hipóteses, a um descrédito parcial, em que só tem “credibilidade” quem publica aquilo que afaga as próprias convicções político-ideológicas; na pior das hipóteses, à inviabilização total do trabalho jornalístico, com todos os prejuízos que isso comporta, inclusive na fiscalização do poder público e na denúncia de injustiças.

Como afirmou o New York Times em seu editorial, a imprensa tem de ser corrigida quando erra. Mas ter suas convicções e posições ideológicas é um direito de todo veículo de imprensa. Quando ela é atacada indiscriminadamente como “inimiga”, estamos diante da erosão de um dos pilares da democracia, venha de um ditador comunista, de um presidiário populista ou de um presidente dos Estados Unidos.

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