No exato momento em que o Rio Grande do Norte vive dias de terror devido à ação de criminosos que vêm incendiando veículos e edifícios – acredita-se em retaliação do crime organizado devido a operações policiais recentes –, o proverbial alienígena que pousasse em Brasília na última quarta-feira, dia 15, concluiria que os grandes problemas da segurança pública brasileira são o preconceito, a violência de gênero e... a polícia. Afinal, essa foi a tônica da cerimônia de lançamento da segunda edição do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), um repeteco de iniciativa semelhante instituída em 2007.
O evento foi marcado pela entrega de 270 viaturas para a Patrulha Maria da Penha (outras 230 serão entregues posteriormente), pelo anúncio da construção de mais 40 Casas da Mulher Brasileira, de bolsas para cursos de formação voltados a agentes de segurança pública e críticas às operações de combate à criminalidade nos morros cariocas, cortesia de dois moradores do Complexo da Maré – área dominada pelo tráfico no Rio de Janeiro que o ministro Flávio Dino, da Justiça, visitara na segunda-feira – e do próprio presidente Lula, ao afirmar que “muitas vezes o Estado só está presente na periferia com a polícia, e não está presente para resolver, está presente muitas vezes para bater”.
Ignorar completamente o papel do crime organizado e do tráfico de drogas como causas da insegurança que afeta todos os brasileiros, mulheres e homens, é um erro grotesco de análise
Quanto ao crime organizado, nem uma única palavra da parte de nenhuma das autoridades presentes. Para evitar qualquer menção às organizações criminosas que operam verdadeiros Estados paralelos em várias localidades brasileiras, Lula não pensou duas vezes antes de criar uma ficção: “nós chegamos a ponto de no Rio de Janeiro, teve um tempo, o soldado não tinha coragem de ir para casa com a farda. Ele tirava a roupa, deixava a roupa no quartel, porque ele não queria que o povo soubesse que ele morava lá, de medo. Então, em um país em que o povo tem medo da polícia, ou melhor, a polícia tem medo do povo e o povo tem medo da polícia”. Ora, quem o policial teme não é o povo, o cidadão comum, que deseja trabalhar e sustentar sua família, mas as quadrilhas que não hesitam em executar policiais apenas por estarem envergando a farda, como já ocorreu não apenas no Rio, mas em muitas outras cidades brasileiras.
A violência contra a mulher é uma triste realidade brasileira, que inclusive se intensificou durante a pandemia; precisa, sim, ser combatida com rigor. Mas isolá-la desta forma ao mesmo tempo em que se ignora completamente o papel do crime organizado e do tráfico de drogas como causas da insegurança que afeta todos os brasileiros, mulheres e homens, é um erro grotesco de análise. Por mais que a segurança pública seja responsabilidade primária dos governos estaduais, não federais, a União teria muito a contribuir neste campo, inclusive na formulação de novas leis que, sem ferir o direito à ampla defesa, fechassem todas as brechas e facilidades que réus e condenados encontram para não pagar (ou não pagar totalmente) pelos seus crimes – inclusive a violência de gênero. O pacote anticrime formulado pelo então ministro da Justiça e hoje senador Sergio Moro era um passo nesta direção, mas foi sabotado no Congresso, com a ajuda da esquerda.
Podemos resumir em poucas palavras a sequência de erros que faz o crime compensar no Brasil: quando há o crime, nem sempre a polícia o investiga; quando investiga o crime, nem sempre o soluciona; quando o soluciona, nem sempre o culpado é preso; quando é preso, nem sempre ele é julgado pela Justiça; quando o culpado se torna réu, nem sempre é condenado; e, por fim, quando é condenado, o bandido nem sempre cumpre a totalidade da pena: fica pouco tempo na cadeia – isso quando não ordena novos crimes de dentro da própria unidade prisional. Se o poder público deseja realmente proporcionar segurança pública de qualidade para todos, mulheres e homens, precisa atacar em todas essas frentes, com profunda cooperação entre os três poderes e os governos federal e estaduais.
Em vez disso, no entanto, o lançamento do Pronasci dá uma boa ideia do que será a política de segurança pública do governo Lula, com a predominância do identitarismo e do discurso segundo o qual “o Brasil prende muito e prende mal”, sem falar da volta da inversão completa de valores que trata o bandido como vítima – palavra, aliás, que o presidente usou ao se referir a um “jovem de 18, 19 anos” que “vai sair da cadeia pior do que ele entrou (...) porque ele entrou um inocente, ou seja, uma vítima de um delito que muitas vezes não tinha clareza do porquê estava cometendo aquilo”. Nesta toada, serão necessários muitos governadores e parlamentares mais preocupados com a vida real que com ideologia para que o brasileiro possa viver com mais segurança e menos medo.