A possibilidade da vitória do republicano Donald Trump na eleição presidencial norte-americana nunca havia sido totalmente descartada, apesar do favoritismo da democrata Hillary Clinton nas pesquisas, mas a maneira como o magnata conquistou o posto foi, sim, surpreendente. Trump venceu Hillary em praticamente todos os swing states (estados que sempre apresentam disputas equilibradíssimas entre democratas ou republicanos, em vez de serem “feudos” de um ou outro partido) importantes, como Flórida, Ohio (ambos vencidos por Barack Obama em 2012) e Carolina do Norte. Trump conquistou, ainda, estados tradicionalmente democratas, como Pensilvânia e Michigan. Um feito notável, ainda mais levando em conta a oposição de boa parte da imprensa, que apoiou Hillary.
Mas nada disso esconde o fato de que Trump era, provavelmente, o menos qualificado dos republicanos que disputaram a indicação do partido. Havia opções muito melhores, como Marco Rubio, Ted Cruz ou, especialmente, John Kasich. Depõem contra Trump não apenas suas falhas de caráter – como a conversa explicitamente chula e machista gravada em 2005 e divulgada já durante a corrida presidencial –, mas também suas propostas destinadas a criar divisão e preconceito: contra o problema real da imigração ilegal, Trump sugeriu construir um muro na fronteira com o México; contra a ameaça real do extremismo islâmico, o magnata pretendia tornar todos os muçulmanos suspeitos até prova em contrário. Essa retórica conquistou votos nas primárias, que não raras vezes se tornam um concurso que premia as posições mais extremas. Mas, na eleição geral, um voto de endosso a esse tipo de discurso seria de se preocupar.
Uma democracia sólida como a norte-americana tem meios de frear impulsos autoritários
Não se pode descartar, no entanto, o impulso à votação de Trump derivado da rejeição a Hillary. Seu apoio ao aborto até os momentos finais da gestação; suas posições vistas como uma ameaça à liberdade religiosa, especialmente dos cristãos evangélicos; a controvérsia sobre o uso de contas pessoais de e-mail para troca de mensagens sobre assuntos de segurança nacional; a alegada omissão da então secretária de Estado durante os acontecimentos que levaram ao ataque a uma representação diplomática norte-americana em Bengazi, na Líbia, em 2012; e as ligações entre a Fundação Clinton e autocracias do Oriente Médio que também financiam o Estado Islâmico foram temas importantes durante a campanha, embora nem todos eles tivessem tido repercussão na imprensa internacional.
A economia e a geração de empregos também dirigiram o voto, especialmente no chamado “rust belt” (“cinturão da ferrugem”), formado por estados com vocação industrial, alguns dos quais ainda sofrem os efeitos da crise econômica iniciada na década passada. Neste caso, tanto Trump quanto Hillary apresentaram plataformas críticas ao livre comércio, com ataques ao Nafta (acordo que inclui Canadá e México) e à nova Parceria Transpacífico (TPP). O republicano conseguiu ser mais enfático no discurso protecionista – aproveitando-se do fato de Hillary ter elogiado o TPP no passado e de o Nafta ter sido criado durante o mandato do ex-presidente Bill Clinton, marido de Hillary –, conquistando estados que não se inclinavam para o Partido Republicano desde a época de Ronald Reagan, nos anos 80.
Por mais ressalvas que se tenha a Trump, não temos como compartilhar das previsões apocalípticas e muito menos de comparações com a Alemanha dos anos 30, feitas antes e depois da eleição, inclusive na grande imprensa. Uma democracia sólida como a norte-americana tem meios de frear impulsos autoritários. Trump sabe disso, e seu primeiro discurso como presidente eleito foi bem mais conciliador, enfatizando a necessidade de “trabalhar juntos e unir esta grande nação” por meio de um governo “para todos os americanos”. Só podemos esperar que suas ações sejam pautadas mais por estas palavras que pela agressividade da campanha, e que a maioria republicana tanto no Senado quanto na Câmara de Representantes seja capaz de opor-se a Trump quando necessário, contendo qualquer impulso demagogo ou protecionista que ele venha a exibir na Casa Branca.