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O tema da liberdade religiosa está na pauta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). No fim de junho, a corte iniciou a análise de um processo que, em princípio, tem pouca relevância, mas na prática pode ter consequências seriíssimas: a corte julga o processo da vereadora Valdirene Tavares, de Luziânia (GO) que é acusada de usar sua posição de pastora em uma igreja local para angariar votos. O relator do caso, o ministro Luiz Fachin, usou o caso para defender que o “abuso de poder religioso” seja razão para cassação de mandato. “A imposição de limites às atividades eclesiásticas representa uma medida necessária à proteção da liberdade de voto e da própria legitimidade do processo eleitoral, dada a ascendência incorporada pelos expoentes das igrejas em setores específicos da comunidade”, disse ele. Fachin propôs que, a partir das próximas eleições, o Judiciário passe a considerar o abuso religioso com uma ilegalidade semelhante ao abuso de poder econômico.
O Ministério Público Eleitoral defendeu, no mesmo caso, uma interpretação semelhante. Fachin se opôs à cassação de Valdirene, mas por uma questão formal: ele considerou não haver provas suficientes. A análise do caso foi suspensa por um pedido de vista, e deve retornar em breve à pauta do TSE.
As declarações do ministro Fachin são preocupantes por múltiplas razões. Em primeiro lugar, por uma barreira legal: a legislação eleitoral não menciona o abuso de poder religioso como motivo para perda de mandato. A Lei Complementar 64 de 1990, que trata das cassações de mandato, cita apenas “abuso do poder econômico ou político.” Para que o abuso religioso se juntasse à lista, seria necessária a aprovação de um projeto de lei no Congresso Nacional, o único ente com legitimidade conferida pela Constituição Federal para tal e com amplo espaço para o debate. Mesmo porque o termo “abuso de poder religioso” precisaria ser bem definido em lei, para que a liberdade religiosa não sofra eventualmente com abusos arbitrários do Judiciário.
Em segundo lugar, a argumentação de Fachin parece se basear na premissa de que os adeptos de algumas religiões têm algum tipo de limitação cognitiva que os impede de julgar criticamente e os compele a seguir cegamente seus líderes, como se fossem menores incapazes. Essa mera hipótese deve ser descartada. Afinal, é preciso levar em conta que as pessoas aderem a uma entidade religiosa de livre e espontânea vontade e comumente podem sair quando bem desejar – em hipótese contrária, caso haja ameaça ou coação, a lei comum já tem os remédios adequados.
Em terceiro lugar, o raciocínio carece de solidez lógica. Fachin diz que a liberdade religiosa deve ser limitada porque as lideranças religiosas têm grande influência. Aplicado o mesmo silogismo a outras categorias, seria preciso proibir que artistas, jogadores de futebol e os chamados influenciadores digitais militassem em favor de candidatos ou partidos políticos. Algumas dessas figuras, com milhões de seguidores fiéis nas redes sociais, certamente têm ascendência sobre um público muito mais amplo do que o pastor ou padre de uma igreja. E, no entanto, a legislação não veda (e nem deveria vedar) que figuras públicas peçam votos para candidatos, ou que sejam eles mesmos os candidatos e assim peçam votos a si mesmos.
O uso de púlpitos e altares para proselitismo eleitoral pode ser condenável do ponto de vista teológico ou doutrinário em alguns casos, mas não deve constituir uma ilegalidade. A separação entre a autoridade da “Igreja” e do “Estado” é fruto de uma longa discussão no Ocidente, que inclusive originou o conceito de “laicidade”. Portanto, exceto em circunstâncias extremas, já previstas por lei (como a incitação à violência ou a prática do charlatanismo), o conteúdo das mensagens religiosas simplesmente não está sujeito às autoridades do Estado. Por isso, assusta que um magistrado como Fachin, que também é ministro do Supremo Tribunal Federal, fale em “imposição de limites às atividades eclesiásticas.”
É verdade que, em teoria, é possível que pregadores religiosos (assim como professores, líderes comunitários e empregadores), utilizem artifícios inaceitáveis para obrigar eleitores a votar em um determinado candidato - sob pena, por exemplo, da expulsão de uma comunidade religiosa. O que seria intolerável. Mas o raciocínio do ministro Fachin, que encontra eco em setores da sociedade, não trata disso. Surge, isto sim, da incompreensão com o fato de que as igrejas, como núcleos essenciais à vida em sociedade, exercem um papel legítimo na formação da consciência dos cidadãos. Reconheça-se que o ministro em seu voto admitiu isso quando afirmou que “as visões religiosas habitam a normalidade democrática e incidem, legitimamente, sobre a configuração dos sistemas partidários, tendo em vista que, ao lado das miradas seculares, as concepções religiosas sobre a vida ou o cosmos anima, com especial relevância, o ideário relativo à procura do bem comum”. Mas a conclusão que tira, entendendo como abusiva a liberdade de as lideranças religiosas manifestarem suas preferências políticas, é incompatível com esse entendimento. Temas como aborto ou ideologia de gênero afetam diretamente os valores mais caros dessas instituições, algumas das quais existem muito antes de o Brasil se tornar uma nação. Portanto, é de se esperar que elas defendam publicamente seus valores, inclusive sugerindo candidatos que partilham desses valores, ou ainda pedindo que evitem candidatos que se opõe aos mesmos. Também é de se imaginar que entre um candidato a presidente que prometa restringir a liberdade religiosa e outro que tome a posição oposta, é natural que a parte potencialmente afetada adote uma posição clara em favor de um e contra o outro.
Ao defender uma tomada de posição ativista por parte do Judiciário, Fachin erra do ponto de vista legal, porque não há lei a tratar do assunto, erra por não agir isonomicamente, por exigir de líderes religiosos respondam a critérios dos quais outras figuras de grande influência estão isentos; e, por fim, erra ao demonstrar uma visão imprecisa do papel das instituições religiosas em uma sociedade livre. Por colocar em risco a liberdades fundamentais como são a de expressão e religiosa, espera-se que suas palavras não frutifiquem.