Um acordo comercial costurado arduamente ao longo de anos corre agora o risco de não se tornar realidade, graças à verborragia de uns, à sabotagem de outros e ao protecionismo outrora mascarado e agora explícito de outros. Mercosul e Uniao Europeia, a julgar pelos movimentos recentes de alguns de seus membros, estão se desentendendo a ponto de enterrar, ao menos por ora, as perspectivas de uma abertura comercial que seria amplamente benéfica para todos, embora obviamente acabe desagradando alguns setores específicos.
Nos últimos dias, o presidente Lula resolveu apressar a conclusão do acordo, assinado em 2019, mas que depende da aprovação de todos os países envolvidos. Durante a campanha eleitoral de 2022, Lula criticou o texto afirmando que ele “não respeita aquilo que é o desejo do Brasil”; uma vez empossado, impôs dificuldades às negociações para manter controle maior sobre as compras governamentais, em uma demanda que, dado o passado petista, tem lá suas motivações questionáveis, mas que mesmo assim foi contemplada pelos europeus. A pressa recente, assim, soaria contraditória, mas tem ao menos uma explicação: Lula, sempre ansioso pelo protagonismo na cena internacional, queria concluir as conversas antes que seu desafeto Javier Milei tomasse posse como presidente da Argentina, no próximo domingo.
Se argentinos e franceses aparecem agora como os vilões mais óbvios, também é verdade que Lula emperrou bastante as negociações antes de querer posar como o principal articulador de uma definição rápida, e mesmo agora sua verborragia custou caro
Os argentinos, por sua vez, anunciaram ainda no fim de novembro que o presidente Alberto Fernández, que está de saída, não assinaria o acordo na reunião marcada para esta quinta-feira no Rio de Janeiro – o que, no fim das contas, não deixa de ser bastante condizente com o espírito ultraprotecionista do peronismo de esquerda. Milei, por sua vez, mesmo sendo bastante crítico à forma como o Mercosul funciona hoje, é defensor da abertura comercial. Diana Mondino, a chanceler escolhida por Milei, já afirmou que o acordo com a União Europeia é do interesse do novo governo argentino, assim como entendimentos com outros países.
Mas não são apenas os sul-americanos que têm atrapalhado um bom desfecho para as negociações. Países europeus como a França temem desagradar setores como o agronegócio local, pesadamente subsidiado e que seria um dos grandes perdedores em caso de uma ampla abertura comercial. Quando Jair Bolsonaro governava o Brasil, esse protecionismo teve como ser mascarado sob o disfarce de exigências ambientais, mas o pretexto saiu de cena em janeiro de 2023, restando a líderes como Emmanuel Macron admitir o óbvio, ao citar explicitamente a indústria e o agronegócio franceses para chamar o acordo de “completamente contraditório”, em entrevista concedida após Macron e Lula se encontrarem em Dubai, onde ambos participaram da COP28.
Foi quando Lula perdeu o prumo e colocou a perder o esforço que ele mesmo vinha fazendo para concluir o acordo. Chamou os franceses de protecionistas, no que tem razão, mas em seguida eximiu-se totalmente da culpa pelo eventual fracasso nas negociações, jogando toda a responsabilidade sobre os europeus. No dia seguinte à entrevista de Macron, o petista afirmou que “a única coisa que tem de ficar claro é que não digam mais que é por conta do Brasil e que não digam mais que é por conta da América do Sul. Assumam a responsabilidade de que os países ricos não querem fazer um acordo na perspectiva de fazer qualquer concessão. É sempre ganhar mais (...) Se não tem acordo, pelo menos vai ficar patenteado de quem é a culpa de não ter acordo”. Era o que faltava para os europeus deixarem a mesa, com o comissário de Comércio da União Europeia, Valdis Dombrovskis, cancelando sua viagem para a reunião desta quinta-feira no Rio.
Todos, portanto, têm sua responsabilidade de culpa se janela propícia à conclusão do acordo neste fim de ano for mesmo perdida. Argentinos e franceses aparecem agora como os vilões mais óbvios, mas também é verdade que Lula emperrou bastante as negociações antes de querer posar como o principal articulador de uma definição rápida, e mesmo agora sua verborragia custou caro. Países como a Alemanha e setores da economia brasileira como o agronegócio e mesmo a indústria, que já se manifestou favoravelmente ao acordo em várias ocasiões, terão de esperar.
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