Está nas mãos do Supremo Tribunal Federal resolver o quanto antes a controvérsia sobre a constitucionalidade de alguns trechos da Medida Provisória 936, que instituiu novas regras para contratos de trabalho enquanto durar a pandemia do coronavírus, abrindo a possibilidade de reduções na jornada de trabalho e no salário, ou a suspensão temporária do contrato, com o governo federal bancando pelo menos uma parte do dinheiro que o trabalhador deixará de receber por alguns meses. Cada dia que passar sem uma palavra da suprema corte, seja por meio de decisão liminar, mas principalmente por meio do julgamento em plenário, será um dia a mais de insegurança jurídica que pode colocar a perder milhares de empregos.
A Rede Sustentabilidade questionou a possibilidade de os acordos de redução de jornada e salário poderem ser feitos de forma direta entre empregado e empregador, dispensando a mediação do sindicato; também a suspensão do contrato poderá ser acertada diretamente para dois grupos de funcionários: os que ganham, em valores brutos, até três salários mínimos (R$ 3.135) e aqueles com curso superior que recebem acima do dobro do teto do INSS (ou R$ 12.202,12) – para todos os demais, ficou mantida a necessidade de acordo por meio do sindicato. A Rede alega que a MP viola o artigo 7.º, inciso VI da Constituição, segundo o qual “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) VI – irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”. O que está em jogo, portanto, não é a impossibilidade da redução, que está prevista na Carta Magna, na CLT e na MP 936, mas a possibilidade de realizá-la sem necessidade de convenção ou acordo coletivo. E, por se tratar de algo previsto no artigo 7.º, não há possibilidade de alteração por meio de PEC por se tratar de cláusula pétrea.
Cada dia sem uma decisão do STF sobre a constitucionalidade dos acordos individuais é um dia a mais de insegurança jurídica que pode custar vários postos de trabalho
Não nos parece que seja o caso de considerar que a possibilidade de acordo individual contraria a Constituição, mas ainda assim deveria ser permitida neste momento específico devido às circunstâncias extraordinárias que o país está passando. Este é um caminho extremamente arriscado, pois equivaleria a dizer que, em casos extremos, mesmo as garantias constitucionais mais básicas podem ser relativizadas. As alternativas seriam considerar os trechos inconstitucionais e restabelecer a necessidade de aval do sindicato em todos os casos, com todas as consequências econômicas advindas deste entendimento, ou defender sua constitucionalidade, mostrando como a MP 936 pode ser conciliada com o artigo 7.º da Carta Magna – e é esta a opção que o Supremo deveria seguir.
E, para isso, é preciso entender o que moveu o legislador na redação do artigo 7.º e lê-lo dentro da perspectiva do restante da Constituição. Nem a irredutibilidade do salário em si, nem a imprescindibilidade dos sindicatos são os valores supremos a proteger aqui, cedendo prioridade à vida e à dignidade humana, que nestes tempos de desordem econômica também se defende por meio da manutenção do emprego. Foi esta a linha de raciocínio empregada pelo ministro Marco Aurélio Mello quando, em 26 de março, manteve a constitucionalidade do trecho (posteriormente revogado por iniciativa presidencial) da MP 927 que também dispensava a mediação sindical em alguns casos de suspensão de contrato de trabalho ou redução de jornada e salário. “A liberdade do prestador dos serviços, especialmente em época de crise, quando a fonte do próprio sustento sofre risco, há de ser preservada, desde que não implique, como consta na cláusula final do artigo, a colocação em segundo plano de garantia constitucional”, escreveu o ministro, acrescentando que a homologação por meio do sindicato é justamente a formalização a vontade do trabalhador.
Além disso, todo o processo previsto na MP 936 não trata apenas de redução de salário ou suspensão do contrato, mas também de redução de jornada proporcional e, talvez o mais importante, de mecanismos de compensação pelos quais o governo cobrirá ao menos parte da renda perdida pelo trabalhador durante a vigência do acordo. Quanto menor o salário, inclusive, maior a parcela da renda que será coberta pelos recursos públicos, e isso explica o acréscimo dos trabalhadores de menor renda no grupo dos que precisarão de maior agilidade caso seja necessária a suspensão do contrato – quanto aos detentores de diploma universitário com renda acima de R$ 12 mil, a própria reforma trabalhista já os trata como partes capazes de negociar em posição mais igualitária em relação ao empregador.
Não se trata, aqui, de menosprezar o papel dos sindicatos – que, aliás, seguem necessários para negociações que envolvam grupos de funcionários, bem como para todos os acordos de suspensão de contrato de trabalhadores com renda entre R$ 3 mil e R$ 12 mil –, mas de entender que o momento requer respostas rápidas. Dos sindicatos, aliás, se espera o bom senso de compreender a situação de inúmeras empresas que não têm como suportar períodos longos sem receitas e agir em defesa da manutenção dos empregos; os acordos que vierem a ser assinados com sua mediação já estarão juridicamente garantidos, independentemente do desfecho dos questionamentos feitos no Supremo sobre a MP 936. Mas a possibilidade do entendimento individual não pode ser descartada, e cabe aos ministros demonstrar que também estão empenhados no esforço de atenuar os efeitos drásticos da pandemia no Brasil.