A gravidez na adolescência continua a ser uma mazela social que afeta especialmente as brasileiras – a média nacional, de 68,4 bebês nascidos para cada mil adolescentes de 15 a 19 anos, é maior que a média latino-americana (65,5) e mundial (46), segundo dados de 2018 da Organização Mundial da Saúde. Uma gestação nesta idade altera totalmente as perspectivas de vida das jovens, especialmente as mais pobres, sem falar dos riscos para a saúde das próprias gestantes e da possibilidade maior de as crianças crescerem em famílias desagregadas, com todas as consequências socioeconômicas que isso traz. Encontrar meios de evitar a gravidez na adolescência é política pública importante, mas, quando o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos anunciou que incluiria entre suas estratégias a promoção da abstinência sexual, tornou-se alvo imediato de uma série de ataques nada razoáveis, motivados, muitas vezes, por puro preconceito antirreligioso contra tudo o que venha da ministra Damares Alves, evangélica, ou por convicções ideológicas a respeito das escolhas dos adolescentes.
Por que tanta celeuma quando se fala da incentivar os adolescentes a adiar o início da vida sexual? Do ponto de vista puramente lógico, a eficácia da abstinência é incontestável. Não é preciso ser nenhum gênio da biologia para entender que, sem relação sexual, não pode haver gravidez. Nem mesmo os maiores opositores da política defendida por Damares tentam argumentar contra essa verdade óbvia, preferindo apenas ignorá-la e direcionar o debate para outros pontos. Os críticos apontam para outras questões: faz sentido promover a abstinência na sociedade atual? Para uns, trata-se de estratégia que, mesmo desejável, simplesmente não funciona. Outros vão além e afirmam ser absurdo falar de abstinência, pois os adolescentes teriam todo o direito de fazer o que bem desejarem com sua sexualidade e incentivá-los a adiar a vida sexual seria uma forma de “repressão”, argumento que pode vir acompanhado do questionamento sobre o fato de o Estado estar fazendo uma “opção moral” ao decidir incentivar determinado comportamento.
É uma falácia considerar que a simples redução de danos é moralmente neutra, enquanto outras propostas são “ideológicas”; ambas são igualmente fruto de concepções morais
Que existe atualmente uma hipererotização dos adolescentes parece estar fora de dúvida, e para vários dos críticos da proposta de Damares isso nem mesmo chega a ser um problema. Nisso, não fazem mais que seguir os mentores intelectuais do Maio de 1968, que chegaram a pedir, em 1977, a legalização de todas as relações sexuais entre adultos e adolescentes abaixo de 15 anos na França. Filósofos como Michel Foucault, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Roland Barthes argumentavam que mesmo pré-adolescentes deveriam ter o direito de fazer sexo com quem quisessem. O debate tinha como objetivo legalizar a pedofilia no país, mas para isso o caminho adotado pelos filósofos (a maioria deles de esquerda) foi tornar as crianças e adolescentes “sujeitos sexuais” em nada diferentes dos adultos, com direito a buscar a felicidade e a realização por meio da liberação sexual.
O ambiente cultural atual, que vai de sutis produtos de entretenimento direcionados aos adolescentes até o sexo explícito das letras dos bailes funk (gênero que vários políticos querem transformar em patrimônio cultural), pode não ter o refinamento intelectual dos filósofos franceses, mas parte do mesmo ponto. A mensagem é basicamente idêntica: ser sexualmente ativo é uma escolha livre de qualquer adolescente, algo trivial, benéfico e libertador. Na verdade, o estranho, o incomum, o bizarro, seria não fazer essa escolha.
- Flavio Gordon: Sexlib não é política pública (parte 1)
- Flavio Gordon: Sexlib não é política pública (parte 2)
- Abstinência sexual, as críticas infundadas e o que dizem os números (artigo de Raphael Câmara, publicado em 21 de janeiro de 2020)
- Esses moços, pobres moços (editorial de 12 de abril de 2014)
- Adolescência sem sexo, um debate necessário
Ora, quando os críticos do incentivo à abstinência acusam o Estado de estar usando posições morais como embasamento para políticas públicas, ignoram (ou pretendem ignorar) que todo o exposto acima também manifesta uma avaliação moral a respeito da atividade sexual. Se um governo prioriza a oferta indiscriminada de preservativos, pílulas e DIUs a adolescentes, baseando nisso suas políticas de enfrentamento à gravidez precoce e às doenças sexualmente transmissíveis, também envia uma mensagem de cunho moral: a de que não há nada de problemático na atividade sexual durante a adolescência, desde que daí não resulte uma gravidez ou uma doença. E, se esta avaliação moral pretende ser vista como legítima, também o deve ser a posição que defende o adiamento do início da vida sexual, baseada em uma série de considerações filosóficas, antropológicas, médicas e psicológicas. É uma falácia considerar que a simples redução de danos é moralmente neutra, enquanto outras propostas são “ideológicas”; ambas são igualmente fruto de concepções morais, e por isso não se pode rechaçar de antemão a promoção da abstinência com base em uma suposta “neutralidade moral” do Estado. Além disso, as duas políticas são meramente propositivas, não impositivas: trata-se de sugerir comportamentos, não de impô-los. A liberdade dos jovens continua preservada para que façam o que julguem ser melhor para si mesmos.
Por fim, resta o argumento da ineficácia do incentivo ao adiamento da vida sexual. Se o ambiente atual praticamente empurra o adolescente para a atividade sexual precoce, isso quando não o ameaça com o ostracismo social caso não siga a tendência da turma, não há como resistir a essa onda erotizante, afirma-se. Os jovens invevitavelmente se tornarão sexualmente ativos e a sociedade não tem nada mais a fazer a não ser encher suas mãos de contraceptivos para que não engravidem ou não adoeçam. Esse raciocínio esconde dois equívocos graves, o primeiro deles a respeito da própria natureza do jovem.
Os adolescentes e os jovens, com seu característico idealismo, anseiam por grandes ideais e os abraçam quando são expostos a eles
Quem critica a defesa da abstinência afirmando que ela “não funciona” trata o jovem como um ser incapaz de ter vontade própria, cegamente obediente aos instintos, não muito mais que um animal reprodutor. Em tempos nos quais “empoderamento” virou uma palavra mágica, nega-se a possibilidade de o adolescente empoderar-se dizendo “não” ao impulso erotizante. Mas isso está muito longe da verdade. Os adolescentes e os jovens, com seu característico idealismo, anseiam por grandes ideais e os abraçam quando são expostos a eles. O respeito pelo parceiro e a compreensão de que o sexo, como expressão fundamental do amor humano entre homem e mulher, exige maturidade não são um idioma incompreensível ao jovem de hoje. Uma vivência sadia da sexualidade, no momento certo, é uma proposta que os adolescentes têm o direito de ouvir, ao contrário do que argumentam aqueles para os quais os jovens não passam de máquinas sexuais sem capacidade de pensar por conta própria.
Além disso, o sucesso de movimentos que usam o slogan “escolhi esperar” e os indicadores de países que adotaram a promoção da abstinência – normalmente, como estratégia contra a epidemia de Aids – mostram justamente o contrário do que dizem os críticos. Isso é tão evidente que só mesmo a cegueira ideológica explica a insistência daqueles que se recusam a enxergar os resultados. O médico Raphael Câmara expôs, em artigo recente nesta Gazeta do Povo, alguns dos estudos sobre o tema, mostrando que os benefícios do incentivo à abstinência já são verificados pela literatura científica. Da mesma forma, a longa experiência do pesquisador Edward Green, da Universidade de Harvard, narrada pelo colunista da Gazeta Flávio Gordon, mostra como iniciativas africanas tiveram enorme sucesso e só começaram a falhar quando a promoção da abstinência voltou a ser negligenciada.
Tanto o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos quanto o Ministério da Saúde já adiantaram que a promoção da abstinência virá como estratégia complementar. Os adolescentes continuarão tendo à disposição os métodos contraceptivos atualmente oferecidos pela rede pública, caso optem por ter relações sexuais. A diferença é que, em vez de serem meros objetos de políticas de redução de danos, agora eles serão tratados também como sujeitos pensantes: ouvirão que há uma alternativa à mera rendição ao ambiente hipersexualizado, e que são capazes de escolher resistir a ele – uma opção que não pode ser negada aos jovens brasileiros.
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