Após duas décadas de regime militar, uma das grandes preocupações dos constituintes de 1988 foi preservar a integridade dos mandatos parlamentares. O país havia acabado de sair de um regime que cassou arbitrariamente quase 60 deputados e senadores, praticamente todos eles como consequência do AI-5, que permitia ao presidente da República cassar unilateralmente mandatos nas três esferas de governo. Esse tipo de interferência que, na essência, nega a representação popular foi enfaticamente rechaçado na Constituição promulgada após a redemocratização.
A Carta Magna consagrou o princípio de que um mandato parlamentar só pode ser retirado pelos pares do político, rejeitando ações do Executivo ou do Judiciário nesse sentido. Bem sabemos que o sistema de cassação não é perfeito – e basta recordar de quantos deputados e senadores comprovadamente envolvidos em malfeitos mantiveram seu mandato graças à camaradagem dos colegas, ou da célebre “dancinha do mensalão”, em que a então deputada federal petista Angela Guadagnin celebrou a absolvição de um colega acusado de participação no escândalo de compra de apoio parlamentar. Mesmo assim, manter a decisão nas mãos dos pares ainda é melhor que submetê-la a uma indevida interferência entre poderes, e a prova de que o sistema pode ser aperfeiçoado é a emenda constitucional promulgada em 2013 e que determina o voto aberto no caso de cassação de mandatos.
A proteção do mandato parlamentar foi tão importante para o constituinte que apenas duas exceções foram abertas para a atuação de um outro poder: a perda de mandato por condenação transitada em julgado na esfera criminal (artigo 55) e a possibilidade de prisão de um deputado federal ou senador, apenas “em flagrante de crime inafiançável” (artigo 53). Mesmo assim, neste segundo caso, a Constituição determina que a casa legislativa a que pertence o parlamentar precisa dar seu aval à prisão, recebendo os autos do processo em menos de 24 horas. Foi o caso do ex-senador Delcídio do Amaral, preso em flagrante em novembro de 2015 por ordem do STF, acusado de tramar a fuga do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró e de comprar seu silêncio, atrapalhando as investigações da Lava Jato.
Interpretou-se o caso de Eduardo Cunha como precedente, e não como uma situação “extraordinária, excepcional e, por isso, pontual e individualizada”
Em maio de 2016, no entanto, surgiu um caso “fora da curva”: o do então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Uma decisão inédita do então relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki, afastou o deputado do comando da casa e do mandato parlamentar (Cunha acabaria cassado pelos deputados quatro meses depois). No texto de sua decisão, Zavascki lembrou que não existe “previsão específica, com assento constitucional, a respeito do afastamento, pela jurisdição criminal, de parlamentares do exercício de seu mandato”. Mas, apesar da ausência de respaldo constitucional, explicou Zavascki, no caso de Eduardo Cunha o afastamento era medida “necessária, adequada e suficiente” – de fato, pois o então presidente da Câmara estava ostensivamente usando seu cargo para influenciar o andamento do processo de cassação que contra ele corria no Conselho de Ética, além de constranger testemunhas que o pudessem incriminar na Lava Jato.
O que estava em jogo, naquele caso, não era tanto a gravidade dos crimes imputados a Cunha, mas a ameaça ao próprio funcionamento regular de um órgão da Câmara dos Deputados. Por isso a comunidade jurídica compreendeu os argumentos de Zavascki, que ainda tomou o cuidado de descrever aquela situação como “extraordinária, excepcional e, por isso, pontual e individualizada”. E assim deveria permanecer.
No entanto, em 18 de maio deste ano um ministro do Supremo voltou a suspender mandatos parlamentares, como Zavascki havia feito. Desta vez, Edson Fachin determinou o afastamento do senador Aécio Neves (PSDB-MG) e do então deputado Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR). No caso de Loures, que era suplente, a decisão perdeu força quando seu colega Osmar Serraglio reassumiu a cadeira na Câmara, mas Aécio continua afastado.
Leia também: A “lista de Fachin” (editorial de 13 de abril de 2017)
E aqui reside o perigo. Interpretou-se o caso de Eduardo Cunha como precedente, e não como uma situação “extraordinária, excepcional e, por isso, pontual e individualizada”, para repetir as palavras de Zavascki. Não é nossa intenção, no momento, fazer juízos sobre a veracidade ou não das acusações que pesam contra o senador tucano – para isso há a Justiça –, e sim de analisar se existem as condições que embasam uma decisão de afastamento de mandato. E a acusação de que Aécio pediu ao empresário Joesley Batista R$ 2 milhões para, alegadamente, ajudar a pagar os advogados que defendem o tucano na Lava Jato não guarda a menor semelhança com as atitudes tomadas por Eduardo Cunha e que justificaram a decisão de Teori Zavascki. Podem – e devem – ensejar investigação e outras providências previstas na lei, mas jamais um afastamento do mandato parlamentar, decisão que, como admitido pelo primeiro magistrado a tomá-la, não tem amparo constitucional, configurando uma interferência entre poderes.
Aécio recorreu da decisão e teria seu caso julgado na última terça-feira, mas um recurso do próprio senador – que gostaria de ver sua situação analisada pelo plenário do STF, e não apenas pela Primeira Turma – adiou o julgamento. Este adiamento, ainda que solicitado pela defesa de Aécio, acaba prolongando uma situação complicada e perigosa. Quando do afastamento de Eduardo Cunha, o plenário do STF confirmou por unanimidade a decisão de Zavascki, mas o ministro Dias Toffoli advertiu que “não é desejo de ninguém que isso passe a ser instrumento de valoração de um poder sobre outro, de empoderamento do Poder Judiciário em relação aos poderes eleitos democraticamente pelo voto popular”. A advertência de Toffoli não pode ser ignorada. A atuação de Fachin como relator da Lava Jato não permite dúvidas sobre a retidão que o move, mas neste caso específico é preciso discordar de sua decisão. A causa nobre do combate à corrupção se desvirtua quando se torna pretexto para tolerar o desrespeito à Constituição e a interferência entre poderes.
Justiça do Trabalho desafia STF e manda aplicativos contratarem trabalhadores
Parlamento da Coreia do Sul tem tumulto após votação contra lei marcial decretada pelo presidente
Correios adotam “medidas urgentes” para evitar “insolvência” após prejuízo recorde
Milei divulga ranking que mostra peso argentino como “melhor moeda do mundo” e real como a pior
Deixe sua opinião