Um episódio que chegou a ser exageradamente tratado como um atentado inominável à democracia brasileira pode terminar sem que nenhum dos envolvidos seja sequer indiciado. A Polícia Federal encerrou as investigações sobre a suposta hostilidade de um grupo de brasileiros contra o ministro do STF Alexandre de Moraes e sua família no aeroporto internacional de Roma, em julho do ano passado, e seu relatório afirma que houve a chamada “injúria real”, aquela que “consiste em violência ou vias de fato”, de acordo com o artigo 140, parágrafo 2.º do Código Penal, e cuja pena é de até um ano de prisão e multa.
O relatório, é preciso ressaltar, traz a interpretação da PF, pois os vídeos gravados pelas câmeras do aeroporto seguem mantidas em sigilo pelo ministro Dias Toffoli, relator do caso; a sociedade só teve acesso, até o momento, a frames dos vídeos que constam de um relatório preliminar divulgado em outubro de 2023. Como as câmeras do aeroporto não captam som, seria impossível identificar uma possível injúria verbal, mas, sempre segundo a PF, as imagens mostrariam que o empresário Roberto Mantovani Filho teria supostamente acertado o rosto de Alexandre Barci de Moraes, filho do ministro, deslocando seus óculos; Barci, por sua vez, teria retrucado com um empurrão. No entanto, ninguém será indiciado pelo suposto empurra-empurra porque uma instrução normativa da PF proíbe o indiciamento por crimes de menor potencial ofensivo. Além disso, a lei brasileira não prevê extradição pelo crime de injúria real, ou seja, não estão cumpridas todas as condições para que um brasileiro possa responder em território nacional por um crime cometido fora do país.
O caso do aeroporto de Roma é uma espécie de microcosmo que reflete tudo o que há de errado com o sistema de persecução penal colocado em prática pelo STF atualmente e endossado por parte nada desprezível da opinião pública
E aqui está um ponto crucial a destacar. Desde que o episódio veio à luz, não era preciso ser nenhum gênio da investigação criminal para saber que, caso se confirmassem os relatos iniciais, este seria um caso de injúria, e não mais que isso. Mesmo assim, a família Mantovani foi enxovalhada incessantemente como se tivesse feito algo de muito sórdido – o presidente Lula chegou a dizer que “um cidadão desse é um animal selvagem, não é um ser humano”; em outra ocasião, chamou os Mantovani de “canalhas” que “não merecem respeito” e insinuou que eles seriam estelionatários. Além disso, o episódio foi transformado por autoridades e jornalistas em algo bem maior do que realmente era, com direito a acusações de “ataque à democracia” da parte de Flávio Dino, ex-ministro da Justiça e hoje ministro do STF, e Ricardo Lewandowski, ex-ministro do Supremo e hoje ministro da Justiça.
Foi com base neste delírio, em que um bate-boca se transforma em tentativa de golpe de Estado, que os Mantovani foram vítimas de uma absurda operação de busca e apreensão em dois endereços do casal, por ordem da então ministra Rosa Weber. Afinal, nada que os policiais tivessem levado faria qualquer na diferença na investigação de um crime de injúria. As camadas finais de arbítrio vieram pelas mãos de Toffoli, que mantém até agora um sigilo inexplicável sobre o vídeo enviado pelas autoridades italianas, e incluiu Moraes e sua família como assistentes de acusação de forma ilegal, já que não havia ação penal em curso; e também da própria PF, que publicou em outubro um relatório repleto de ilações que comprava integralmente a versão de Moraes, e cuja corregedoria abriu processo disciplinar contra o presidente da Associação dos Peritos Criminais Federais (APCF), Willy Hauffe Neto, após ele ter criticado o fato de o relatório policial ter sido feito por um agente, e não por um perito – o PAD está suspenso por ordem judicial.
O caso do aeroporto de Roma é uma espécie de microcosmo que reflete tudo o que há de errado com o sistema de persecução penal colocado em prática pelo STF atualmente e endossado por parte nada desprezível da opinião pública. Decisões que contrariam frontalmente a lei processual; sigilos sem razoabilidade alguma; transformação de praticamente tudo em “crime contra a democracia”; silenciamento de quem faz perguntas incômodas; operações policiais descabidas, com direito a possível pesca probatória – os Mantovani foram questionados pela PF sobre o 8 de janeiro e urnas eletrônicas, o que não tinha relação alguma com o episódio no aeroporto –; e conclusões tiradas de antemão sem prova alguma que as embase. Com o circo devidamente desmontado, o que se espera é que a constatação desta aberração jurídica e midiática finalmente acorde aquelas parcelas da sociedade que ainda dormem enquanto o abuso continua em curso em outros inquéritos, investigações e julgamentos.
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