Diante da retórica exasperada dos novos parlamentares eleitos, das pressões crescentes das redes sociais e da tentativa de instalação de uma CPI para investigar os tribunais superiores, o Supremo Tribunal Federal (STF) resolveu reagir com a instalação, por ofício de seu presidente, o ministro Dias Toffoli, de um inquérito para apurar “notícias fraudulentas” e ataques contra o tribunal. Mas a crise pela qual passa o STF vem sendo gestada, na verdade, pela configuração institucional da corte, por previsões legais que incham sua competência e pela postura ativista e pouco contida de seus próprios ministros. A solução dessa crise passa não pela tentativa de intimidação de seus críticos, mas por uma agenda positiva de reformas do STF que o transforme em uma verdadeira corte constitucional.
Felizmente, o Supremo já tem em mãos um instrumento para avançar essa agenda e ajudar a tornar o ambiente político do país mais saudável. Funciona no STF uma Comissão de Regimento Interno responsável pela revisão da “lei” que organiza o funcionamento da corte, um documento que foi sendo remendado e que ainda tem muitas normas editadas antes da Constituição de 1988 e da informatização dos processos. Ministros que fazem parte da comissão já têm sinalizado que os trabalhos caminham, em um primeiro momento, no sentido de priorizar reformas que ampliem o potencial da repercussão geral, criada por emenda Constitucional em 2004, e do uso do plenário virtual.
O tribunal tem hoje 39.193 casos à espera de julgamento. Em 2007, quando o requisito da repercussão geral passou a valer, tramitavam no STF mais de 100 mil ações. De acordo com lei, o tribunal só pode aceitar julgar um Recurso Extraordinário (RE) que traga “questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo”. Embora a novidade tenha feito o número de processos cair consideravelmente, eles ainda excedem a capacidade do tribunal, e a repercussão acabou criando um problema reflexo: como ficam com a tramitação suspensa nas instâncias inferiores à espera do julgamento do caso análogo com repercussão geral reconhecida no STF, hoje há quase 1 milhão de causas bloqueadas em todo o país.
Sem uma mudança de cultura no Judiciário, não haverá mudança legal ou institucional que opere milagres no STF
Tanto o ministro Edson Fachin quanto o ministro Barroso já se manifestaram pela necessidade der dar mais racionalidade à repercussão geral, principalmente permitindo que fosse mais fácil recusar a apreciação de recursos pelo tribunal. Os ministros também veem como fundamental para desafogar o plenário e as turmas a ampliação do uso do plenário virtual não só para reconhecer a repercussão geral, mas para julgar o mérito dos próprios REs e de outras classes de processos. Mudanças no sistema eletrônico do tribunal para dar mais transparência e celeridade aos procedimentos e melhorar a comunicação entre os ministros também estão no radar.
Um passo seguinte para aumentar a eficiência do STF e garantir que ele se dedique aos grandes temas constitucionais precisaria de alterações legais. A própria previsão da repercussão geral, a rigor, não requer a discussão de temas estritamente constitucionais, mas sim de importância econômica, política, social e jurídica, na atual redação da lei. O ministro Fachin, por exemplo, tem defendido que a repercussão geral deve ser apenas de relevante questão constitucional. Mais de um integrante da corte já se manifestou favorável à racionalização dos recursos em processos, e parte importante dessas reformas envolve fazer o tribunal deixar de ser a última instância dos casos criminais do país.
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Os ministros do STF deveriam dar prioridade a essas propostas de reforma e fazer um esforço institucional em prol dessa agenda positiva. No curto prazo, essa seria a melhor resposta para os questionamentos à legitimidade do tribunal. No longo prazo, transformar o Supremo em uma corte constitucional de verdade, que se debruce sobre as questões constitucionais relevantes, não só faria o tribunal cumprir com mais eficiência sua função precípua, mas operaria para afastá-lo da tentação de se intrometer em cada questão da vida nacional – incluindo o farto noticiário policial dos últimos anos.
Isso tudo, porém, só será possível com um chamado à responsabilidade dos ministros para que suas ações passem a refletir uma verdadeira cultura de colegialidade, diálogo e racionalidade democrática. Não é segredo para ninguém que o regimento interno do tribunal estabelece prazo para pedidos de vista, mas ele é quase sempre descumprido. A lei também proíbe que os juízes manifestem opinião depreciativa sobre a decisão dos colegas, mas não é raro que alguns ministros expressem opinião bem mais grave que “depreciativa”. Esses exemplos bastam para fazer ver que, sem uma mudança de cultura no Judiciário, não haverá mudança legal ou institucional que opere milagres no STF.