Diz a Constituição Federal, no artigo 131, que a Advocacia-Geral da União “representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe (...) as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo”. Mas, no Brasil de Lula, e sob o comando de Jorge Messias – aquele que o Brasil inteiro, em 2016, ficou conhecendo como “Bessias”, encarregado por Dilma Rousseff de levar a Lula um termo de posse como ministro para que ele ganhasse foro privilegiado –, a AGU entrega-se com deleite a outra atividade: servir de polícia político-ideológica contra os adversários do petismo. Dois episódios recentes são bastante eloquentes a respeito desta prática petista de desvirtuar as instituições de Estado para que funcionem a serviço do partido.
No começo de janeiro, Lula criou, dentro da AGU, um órgão bastante peculiar: uma Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia, para “representar a União, judicial e extrajudicialmente, em demandas e procedimentos para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas”. O palavreado empolado só enganava os muito incautos: tratava-se de colocar o peso da AGU no combate a qualquer crítica ao governo petista, uma estrutura do “Ministério da Verdade” lulista. É este órgão que, por ordem de Messias, instaurou procedimento contra uma “campanha de desinformação” atribuída a Alexandre Garcia. O jornalista, que também é colunista desta Gazeta do Povo, afirmara no programa Oeste sem Filtro, transmitido pela revista Oeste no YouTube em 8 de setembro, que a tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul fora potencializada porque “em governo petista (...) foram construídas três represas pequenas que aparentemente abriram as comportas ao mesmo tempo”.
A lei brasileira já tem meios suficientes para garantir a reparação quando uma informação falsa chega ao público, e não precisa de censores nem de “fiscais da verdade” governamentais
A informação, no fim, se mostrou incorreta, mas isso não importa absolutamente nada no caso em tela. Apenas em ditaduras o Poder Executivo se atribui o papel de controlador da informação, a ponto de decidir o que é ou não é “desinformação” e determinar abertura de procedimentos contra quem quer que divulgue uma informação falsa, seja jornalista ou não – aliás, o mesmo vale para o Poder Judiciário, que ultimamente também tem abraçado com gosto a tarefa de decidir sobre a veracidade dos fatos. A lei brasileira já tem meios suficientes para garantir a reparação quando uma informação falsa chega ao público, e não precisa de censores nem de “fiscais da verdade” governamentais – especialmente quando se trata de um governo que mente de forma rotineira, como na insistência em dizer que Dilma fora vítima de um golpe, e não de um impeachment legítimo após ter cometido crimes de responsabilidade reais, ou quando o presidente da República diz nunca ter ouvido falar do Tribunal Penal Internacional e que o Brasil “não cresceu nada” no ano passado.
Em outro caso extremamente grave, a AGU aceitou sem pestanejar uma ordem de fora – no caso, do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, na absurda decisão em que ele decidiu violar o cadáver da Lava Jato, anulando todo o acordo de leniência da Odebrecht e fazendo uma série de ilações sobre as razões da operação que caberiam na boca de um advogado de defesa, mas nunca de um magistrado de suprema corte – tudo com base em, ironia das ironias, informações que estão se revelando falsas. Toffoli ordenou que vários órgãos, incluindo a AGU, tomassem “medidas necessárias para se apurar responsabilidades não apenas na seara funcional, como também na esfera cível e criminal”, em relação a juízes e procuradores da Lava Jato. Na prática, concede-se à AGU poder de polícia para investigar membros da magistratura e do Ministério Público, contrariando frontalmente a Constituição Federal. Isso não foi obstáculo para Messias, que já anunciou a criação de uma força-tarefa para analisar a conduta dos agentes públicos.
Toffoli, recorde-se, foi advogado-geral da União por dois anos e meio, no segundo mandato de Lula. Sabe, ou deveria saber, que as funções da AGU não incluem esse tipo de perseguição política. Por que, então, dá ao órgão esse tipo de tarefa? Obviamente, ele sabe que a AGU lulista executaria a ordem com prazer. Mas, acima de tudo, Toffoli faz o que faz porque pode, ciente de que hoje a Constituição só vale quando o Supremo assim deseja, de que contra as decisões do STF “não há a quem recorrer” – como diz a frase atribuída a Rui Barbosa –, e de que não será desautorizado pelos colegas de corte, também eles atolados até o pescoço em ordens inconstitucionais endossadas pelo plenário.
A democracia não acaba apenas com tanques nas ruas; acaba também com canetadas que aos poucos vão minando o Estado de Direito enquanto a sociedade, como o proverbial sapo na água quente, assiste a tudo com inacreditável tolerância, quando não com aplauso – afinal, as vítimas estão todas “do outro lado”. A perseguição política que a Advocacia-Geral da União incorporou como missão é prova disso; felizmente algumas poucas vozes já estão se levantando contra este absurdo, embora ainda lhes falte reconhecer que, no passado, contribuíram para que fosse lentamente construído o processo que desembocou no estado de coisas atual. Lula, que tem como único “plano de governo” eliminar qualquer dissidência e executar sua vingança contra os que tiveram a coragem de investigar e punir seus feitos passados, não quer só um Lavrentii Beria, o chefe da polícia política stalinista que dizia “mostre-me o homem e eu encontrarei o crime”; ele quer vários, e Jorge Messias é apenas o mais novo deles.