Nos últimos dois meses, o Supremo Tribunal Federal deu mais razões para a prerrogativa de foro – a regra pela qual detentores de certos cargos, eleitos ou por nomeação, sejam julgados apenas pelos tribunais superiores, especialmente o STF – seja realmente chamada pelo seu nome popular, “foro privilegiado”. O privilégio, no caso, é o de escapar das mãos da Justiça.
Em fevereiro, o ministro Marco Aurélio Mello mandou arquivar, a pedido da Procuradoria-Geral da República, um inquérito contra o senador Romero Jucá (MDB-RR) – aquele do “grande acordo nacional, com Supremo, com tudo” – em que ele era investigado por desvio de recursos públicos: Jucá teria recebido comissão por obras realizadas entre 1999 e 2001 no município de Cantá. Como o crime de peculato pode render um máximo de 12 anos de prisão, a prescrição ocorre em 16 anos depois do cometimento do crime, de acordo com o artigo 109 do Código Penal. Ou seja, o crime prescreveu e, diante disso, não restava mais nada a fazer a não ser a solicitação de arquivamento pela PGR e a aceitação do pedido por Marco Aurélio.
O STF é visto como um buraco negro no qual as acusações contra poderosos acabam sugadas e jamais voltam à luz
A prescrição significa que o Estado abriu mão da sua pretensão de punir, por pura lentidão. No caso de Jucá, o Supremo recebeu o pedido de investigação em abril de 2004. Em todos esses anos, a corte foi incapaz de conduzir o processo de modo que Jucá acabasse julgado pelos crimes de que era suspeito. O dano causado pela prescrição é tamanho que foi apontado até pela defesa de Jucá. “Em vez de afirmar a inocência, infelizmente fica a história que foi por prescrição”, disse o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay. De fato: é mais evidente o estrago que a prescrição causa quando o acusado é realmente culpado, porque se consagra a impunidade, mas, se o suspeito for inocente, a prescrição não retira a dúvida que fica pairando sobre sua conduta e que talvez jamais seja sanada diante da opinião pública.
Na última terça-feira, dia 17, foi a vez de o ministro Celso de Mello mandar arquivar um outro processo, desta vez envolvendo o deputado Flaviano Melo (MDB-AC). Este caso estava em um estágio bem mais avançado que o de Jucá, pois Melo, acusado de participar de um esquema de desvio com funcionários do Banco do Brasil entre 1988 e 1990, quando era governador do Acre, tinha se tornado réu em 2002 – cinco anos depois, com sua eleição para a Câmara, o processo subiu para o Supremo, onde ficou nas mãos de Mello por dez anos sem que fosse julgado, apesar dos insistentes pedidos da PGR e do fato de o processo estar concluído (ou seja, as alegações finais da acusação e da defesa já tinham sido feitas) desde 26 de maio de 2008.
Também diferentemente do caso de Jucá, o crime de que Melo era acusado ainda não tinha prescrito, mas isso estava prestes a acontecer, em junho deste ano. Celso de Mello alegou que a denúncia era “genérica” e que não havia “justa causa” para a continuação do processo, motivo pelo qual ele deveria ser arquivado. Mas o relator não explicou por que levou quase dez anos para chegar a uma conclusão aparentemente tão simples. A PGR ainda pode recorrer do arquivamento, mas a essa altura já é o caso de perguntar de que serviria prolongar um desfecho que se mostra inevitável.
Esses dois casos mostram como a Justiça pode falhar porque tarda. Mesmo o acúmulo de processos no Supremo – que não é apenas corte constitucional, mas é chamado a decidir sobre praticamente tudo, inclusive questões penais – não justifica que as acusações contra políticos sejam tratadas desta forma. Ao ver o “não desfecho” do inquérito contra Jucá e do processo de Flaviano Melo, o brasileiro teme por fim semelhante nos processos da Lava Jato que envolvem políticos com foro privilegiado – e cujo revisor é justamente Celso de Mello, que tão duro havia sido com os acusados do mensalão, tendo proferido alguns dos votos mais enfáticos na descrição do esquema como um “projeto criminoso de poder”. Que os ministros do Supremo percebam e retifiquem o quanto antes essas atitudes que transformam a corte em um buraco negro no qual as acusações contra poderosos acabam sugadas e jamais voltam à luz.