O desenho definitivo do pleito de outubro está finalmente completo. Após a escolha dos candidatos nas convenções e a formalização das candidaturas por meio da solicitação dos registros, a formação final do Tribunal Superior Eleitoral está consolidada com a posse de Alexandre de Moraes na presidência do órgão, sucedendo Edson Fachin, que passou alguns poucos meses no comando do TSE. Moraes tem uma responsabilidade enorme em suas mãos, e infelizmente não há como a sociedade brasileira estar totalmente tranquila a respeito da maneira como ele e a corte que comanda exercerão tamanho poder.
“A intervenção [na liberdade de expressão] será mínima, porém célere, firme e implacável no sentido de coibir práticas abusivas, ou divulgação de notícias falsas ou fraudulentas, principalmente daquelas escondidas no covarde anonimato das redes sociais, as chamadas fake news”, afirmou o ministro em seu discurso de posse, nesta terça-feira. Seria uma afirmação tranquilizadora se não fosse pelo histórico recente de outros dizeres e atitudes do próprio Moraes e dos tribunais superiores – não apenas o TSE, mas também o Supremo Tribunal Federal, do qual o ministro faz parte, que têm se tornado protagonistas do que chamamos de “apagão da liberdade de expressão no Brasil”.
A Justiça Eleitoral pode incendiar a eleição se agir guiada mais pela intenção de ser uma “editora da sociedade” que de aplicar corretamente a lei
O recurso à mentira nas campanhas eleitorais, especialmente quando se trata de atacar oponentes, é algo corrente no Brasil há muito tempo – as mídias sociais deram uma nova dimensão à prática, não a criaram. Há diversos modos de combater a mentira, a começar pela exposição cristalina da própria verdade, ou pela checagem criteriosa, sem viés, das afirmações feitas pelos candidatos, mas não se descarta o recurso à Justiça no caso de crimes reais contra a honra, como a calúnia e a difamação. Nesse sentido, tem razão o ministro quando afirma que “liberdade de expressão não é liberdade de agressão”. Mas é na sequência de seu discurso que Moraes dá motivos de preocupação. “Liberdade de expressão não é liberdade de destruição da democracia, de destruição das instituições, de destruição da dignidade e da honra alheias. Liberdade de expressão não é liberdade de propagação de discursos de ódio e preconceituosos. A liberdade de expressão não permite a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado de Direito, inclusive durante o período de propaganda eleitoral”, afirmou.
A essa altura, já está muito claro que os tribunais superiores têm optado por desqualificar críticas legítimas à atuação das instituições e questionamentos pertinentes sobre aspectos técnicos do processo eleitoral, colocando tudo no balaio dos “ataques” e criando tabus ao estabelecer temas sobre os quais mal se pode falar. E bem sabemos como as cortes têm reagido nesses casos, com Moraes à frente de inquéritos abusivos que já renderam censura à imprensa, desrespeito ao devido processo legal e ao princípio do juiz natural, confusão dos papéis de vítima, investigador e julgador, e abolição da imunidade parlamentar.
Não há como esquecer, por exemplo, a promessa feita por Moraes quando a chapa de Jair Bolsonaro em 2018 foi inocentada no TSE: “Se houver repetição do que foi feito em 2018, o registro será cassado. E as pessoas que assim fizerem irão para a cadeia por atentar contra as eleições e a democracia no Brasil (...) A Justiça é cega, mas não pode ser tola. Não podemos criar o precedente avestruz. Todo mundo sabe o que ocorreu, o mecanismo usado nas eleições e depois (...) Nós podemos absolver aqui, por falta de provas, mas sabemos o que ocorreu. Sabemos o que vem ocorrendo e não vamos permitir que isso ocorra”. Em outras palavras, Moraes disse estar disposto a tornar realidade o “não temos provas, mas temos convicções” que fora falsamente atribuído, de forma torpe, aos investigadores da Lava Jato – e pretende ir além disso, pois “repetir” aquilo que em 2018 não era suficiente para cassar uma chapa poderia levar até à prisão em 2022.
Cassações de registros ou de diplomas (no caso dos vitoriosos) são situações extremas nas quais a vontade do eleitor acaba relegada a segundo plano, e justamente por isso são punições que só podem ser aplicadas quando há o desrespeito inequívoco a lei que preveja tais penas. O fenômeno das fake news e sua disseminação, no entanto, está sendo usado para se criar ameaças genéricas a quem “disseminar ódio”, “conspiração” ou “medo”, sem uma definição clara do que seja isso. O Judiciário pretende, assim, definir o que é manifestação de opinião ou fake news, o que é “ódio” ou “medo”, e quer o direito de punir discursos, opiniões, análises e críticas feitas por candidatos e cabos eleitorais pelo que acha merecedor de punição, não pelo que realmente é punível por lei.
Como se não bastasse o clima de polarização que, por si só, já acirra os ânimos, a Justiça Eleitoral pode incendiar a eleição se agir guiada mais pela intenção de ser uma “editora da sociedade” que de aplicar corretamente a lei. O desafio de Alexandre de Moraes e dos demais ministros é o de respeitar a liberdade de expressão em seu sentido autêntico, sem “inventar” crimes eleitorais sem previsão legal, sem coibir discursos que deveriam ser livres, ainda que contundentes, sem aplicar penas desproporcionais que fraudem a vontade popular. Que nestes poucos meses eles possam agir com o senso de justiça que, infelizmente, vem faltando nos últimos tempos.
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