Durou apenas algumas dezenas de horas o mais novo episódio de censura à imprensa protagonizado pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Desta vez, os alvos não foram os “suspeitos de sempre”, mas só se surpreendeu com esse fato quem passou os últimos anos fechando os olhos ou mesmo aplaudindo as repetidas violações da liberdade de expressão, ou acreditando ingenuamente que o gênio da censura, uma vez libertado para atacar conservadores, direitistas e apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, voltaria candidamente para a garrafa em vez de se expandir cada vez mais.
Na terça-feira, Moraes ordenou que o jornal Folha de S.Paulo removesse de sua conta no YouTube uma entrevista publicada em 2021 com Jullyene Lins, ex-mulher do presidente da Câmara, Arthur Lira. Em 2006, ela havia acusado o deputado de agressão, mas recuou e o processo foi encerrado em 2015 com a absolvição de Lira. Na entrevista à Folha censurada por Moraes, ela dizia que só retirou as acusações por ter sido ameaçada pelo deputado, que também fora ouvido. O ministro ainda ordenou a retirada de vídeo com outra entrevista de Jullyene ao site de esquerda Mídia Ninja, e derrubou reportagens sobre o mesmo tema, feitas em 2023 pelo portal noticioso Terra e pelo site Brasil de Fato, também de esquerda. Várias publicações no X (antigo Twitter), feitas por outros perfis, também foram censuradas.
A caneta censora ganhou trânsito livre, não vê limites à sua atuação, e agora não poupa nem mesmo os que festejaram este processo de erosão de uma liberdade democrática tão básica
Os advogados de Lira sabiam como convencer Moraes: transformaram uma briga de casal, envolvendo uma figura pública, com acusações sérias, em “ataque à democracia”. Alegaram que as publicações constituíam um movimento coordenado de “desinformação” com o “claríssimo propósito” de “atingir o exercício da elevada função da presidência da Câmara dos Deputados”. Enxergar a pessoa como a encarnação da instituição a que pertence – ou, de forma ainda mais megalomaníaca, como a encarnação da democracia – é prática que o próprio Moraes já adotou, como se percebeu na investigação do entrevero do aeroporto de Roma, em que os suspeitos foram tratados quase como golpistas. Outros episódios em que ministros do STF foram criticados publicamente também foram tratados de forma semelhante.
O argumento funcionou, a ponto de Moraes ignorar a prerrogativa de foro (mais uma vez) e o fato de que uma possível calúnia da parte de Julyenne já teria os meios habituais para ser apurada. Na decisão, Moraes repetiu os bordões em negrito que costuma usar quando profere decisões censoras: “Liberdade de expressão não é Liberdade de agressão! Liberdade de expressão não é Liberdade de destruição da Democracia, das Instituições e da dignidade e honra alheias! Liberdade de expressão não é Liberdade de propagação de discursos mentirosos, agressivos, de ódio e preconceituosos” – e alguém haverá de se perguntar se as frases já não aparecem automaticamente cada vez que um software de texto é aberto no gabinete de Moraes. Explicar como uma disputa conjugal pode equivaler a “destruição da democracia” ou “propagação de discursos preconceituosos” é algo que o ministro não julgou necessário.
Desta vez, no entanto, a estratégia teve sucesso curto. No dia seguinte, Moraes desfez parcialmente o que havia feito, restabelecendo os acessos ao vídeo da Folha e às reportagens do Terra e do Brasil de Fato, mas mantendo a censura ao vídeo da Mídia Ninja, escolha que segue muito mal explicada. Em uma estratégia conveniente para não precisar admitir o erro grosseiro cometido na véspera, Moraes ignorou quase todos os argumentos esdrúxulos usados por ele para a censura; é como se eles, inclusive os baseados em seu contraditório mantra, jamais tivessem existido. A única justificativa empregada, no fim, revela a afobação da caneta censora: o ministro afirmou que “algumas das URLs não podem ser consideradas como pertencentes a um novo movimento em curso, claramente coordenado e orgânico, e nova replicagem, de forma circular, desse mesmíssimo conteúdo ofensivo e inverídico [...] São veiculações de reportagens jornalísticas que já se encontravam veiculadas anteriormente, sem emissão de juízo de valor” – uma constatação que poderia ter sido feita facilmente antes que qualquer decisão pudesse ter sido proferida, e não apenas depois da censura.
Embora o centro da questão esteja no uso indiscriminado da censura e na transformação de absolutamente qualquer acusação contra autoridades em “ataque ao Estado Democrático de Direito”, impossível não enxergar no episódio envolvendo a Folha e outras publicações um eco, mesmo distante, de outra decisão controversa do STF. Em dezembro do ano passado, a corte validou a responsabilização de órgãos de imprensa pela publicação ou veiculação de entrevistas que contenham “informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas”. E, ao fazê-lo, fixou uma tese que ignora totalmente toda a jurisprudência e a boa doutrina da liberdade de imprensa, e que já analisamos em ocasião anterior; os embargos de declaração que buscam um esclarecimento da corte a respeito da devida proteção ao trabalho jornalístico ainda não foram julgados.
A voz firme da sociedade contra a censura já deveria ter se levantado de forma muito veemente quando o mesmo Moraes censurou reportagem da revista Crusoé com informações comprometedoras sobre seu colega de corte Dias Toffoli, em 2019. Moraes recuou, passou a mirar apenas um lado do espectro político-ideológico e os antigos críticos se aquietaram, ou até começaram a apoiar a ofensiva contra a liberdade de expressão. O resultado está aí: a caneta censora ganhou trânsito livre, não vê limites à sua atuação, e agora não poupa nem mesmo os que festejaram este processo de erosão de uma liberdade democrática tão básica.