Terá o país percebido de forma clara a gravidade de tudo o que vem sendo revelado com a divulgação de mensagens e áudios de assessores próximos do ministro Alexandre de Moraes no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior Eleitoral? O pouco que foi tornado público até o momento pelo jornal Folha de S.Paulo – a publicação alega ter 6 gigabytes de conteúdo – já é suficiente para que, ao conhecer as entranhas do mecanismo montado pelo ex-presidente do TSE e relator de inquéritos tão perpétuos quando abusivos no STF, todo o Brasil tenha a certeza de que estamos diante de uma das maiores agressões à democracia cometidas no país desde a redemocratização – uma certeza que, como lembramos ontem, já era acessível a qualquer um que estivesse examinando com atenção tudo o que vem ocorrendo nos últimos cinco anos, mas que agora se transforma em conclusão inescapável.
Observemos com mais atenção dois episódios específicos entre os que já foram divulgados. Em um deles, o único até agora que inclui mensagens enviadas diretamente por Moraes, o ministro faz um pedido ao juiz instrutor Airton Vieira, lotado no gabinete de Moraes no STF: “Peça para o Eduardo analisar as mensagens desse para vermos se dá para bloquear e prever multa” – o alvo, no caso, é o jornalista e colunista da Gazeta do Povo Rodrigo Constantino; “Eduardo” é o perito Eduardo Tagliaferro, então chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED), órgão que faz parte da estrutura do TSE, e não do Supremo. Outra mensagem, enviada por Vieira a Tagliaferro, dizia: “Eduardo, bloqueio e multa pelo STF (Rodrigo Constantino). Capriche no relatório, por favor. Rsrsrs”.
O que tem ocorrido é a perseguição pura e simples, com a abolição do devido processo legal e das garantias constitucionais, substituídas pela vontade ministerial como lex suprema
O segundo episódio envolve a revista Oeste, veículo de imprensa com orientação conservadora, e começa com um pedido de Vieira a Tagliaferro: “Vamos levantar todas essas revistas golpistas para desmonetizar nas redes”, afirma o juiz instrutor. Quando o perito responde dizendo não ter encontrado nada que justificasse medidas judiciais, Vieira responde dizendo a Tagliaferro que “use a sua criatividade… rsrsrs (...) Pegue uma ou outra fala, opinião mais ácida e… O ministro entendeu que está extrapolando com base naquilo que enviou…”, ao que o chefe da AEED, então, responde: “Vou dar um jeito rsrsrs”.
De imediato, saltam aos olhos duas aberrações: a criminalização da opinião, de “uma ou outra fala, opinião mais ácida” que, aos olhos do chefe da AEED, não justificariam medida alguma; e a inversão completa do sistema persecutório. Em qualquer país onde vigora o devido processo legal, diante da possibilidade de um delito, presta-se queixa, investiga-se o fato e, caso se encontre indício de crime, é oferecida a denúncia, que, se for aceita, leva a um julgamento; uma vez havendo condenação, estipula-se pena. Mas não para Moraes, Vieira e Tagliaferro: as decisões já estão tomadas – censurar e multar Constantino, desmonetizar as mídias sociais de veículos como a Oeste –, e trata-se apenas de garimpar pacientemente até encontrar algo que possa ser invocado como justificativa para o que já fora previamente decidido.
Esses dois casos mostram que não estamos apenas diante de uma confusão entre órgãos, uma atuação “fora do rito” – o que já seria (e é) bastante grave, que fique registrado. O que ocorreu é perseguição pura e simples, com a abolição do devido processo legal e das garantias constitucionais, substituídas pela vontade ministerial como lex suprema. Afinal, como resumiu Vieira em uma das mensagens a Tagliaferro, “ele [Moraes] cismou. Quando ele cisma, é uma tragédia”. A cisma de Moraes cria medidas cautelares que não existem no Código de Processo Penal e usa desproporcionalmente aquelas que existem, instaura censura prévia, escolhe alvos e determina que os subordinados encontrem qualquer coisa que os incrimine – e “incrimine”, aqui, é força de expressão, já que os inquéritos relatados por Moraes, como lembramos ontem, até agora produziram quase nada em termos de denúncias e condenações, o que não impediu o ministro de chamar Constantino de “foragido”, mesmo sem existir nem sequer um mandado de prisão contra o jornalista, radicado nos Estados Unidos.
Nestes dias, não faltou quem saísse em defesa de Moraes, a começar por seus colegas de STF, mas também políticos e formadores de opinião de esquerda. Outros admitem que há algo de anormal, mas tentaram tirar força das revelações feitas pelo jornal paulista. Mas quem olha para tudo isso e minimiza sua gravidade, como se isso não passasse de mero inconveniente, como não tivesse ocorrido nada de mais ou, pior ainda, como se isso fosse justificável como os ovos a quebrar para fazer a omelete da democracia, já escolheu seu lado. Quem, diante de tudo isso, não se mexe, embora tenha poder institucional para fazer algo, já escolheu seu lado. E não é o lado do Estado Democrático de Direito, o lado da lei, o lado da justiça, o lado da liberdade, mas o lado do arbítrio, o lado da ditadura.
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