O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, segue firmemente agarrado a uma “defesa da democracia” que continua resultando em arbítrio. Na semana anterior, ele já havia negado pedido da Procuradoria-Geral da República para encerrar de vez a investigação contra oito empresários que cometeram os hediondíssimos crimes de manifestar opiniões privadas no WhatsApp e se questionar sobre a possibilidade de realizar determinados atos ligados à campanha eleitoral. Na última quarta-feira, um novo “não”, agora ao pedido de um dos investigados, o empresário Luciano Hang, para que a investigação fosse remetida à primeira instância, a Justiça Federal em Brasília, já que nenhum dos oito empresários tem prerrogativa de foro que justifique a manutenção do caso no STF.
Esta não seria uma solução inédita: no primeiro ano do inquérito das fake news, Moraes chegou a fatiar a investigação, remetendo partes dela à Polícia Federal nos estados, em uma tentativa de endireitar o que começara torto. Em todos os casos em que isso ocorreu, no entanto, o Ministério Público Federal pediu o arquivamento das denúncias, sendo sempre atendido pelos respectivos juízes. A razão era óbvia: o “vício de origem”, já que o inquérito, além de unir abusivamente as figuras de vítima, investigador e julgador, foi aberto sem lastro real em nenhuma lei ou código, baseando-se apenas em uma interpretação torta de um artigo do Regimento Interno do STF. Caso o pedido de Hang fosse atendido, o desfecho muito provavelmente seria o mesmo, tão evidentes são as aberrações jurídicas cometidas ao longo dos inquéritos das fake news, dos “atos antidemocráticos” (arquivado em 2021) e das “milícias digitais”.
Não é necessário ser um constitucionalista renomado para compreender que o princípio do juiz natural vem sendo violado não apenas na investigação contra os oito empresários, mas em quase toda a totalidade dos inquéritos abusivos
A solicitação do empresário dono da Havan, no entanto, faz todo o sentido. O princípio do juiz natural está inscrito na Constituição, por meio do inciso LIII do artigo 5.º: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. E as competências para processar e sentenciar estão claramente definidas tanto na Carta Magna quanto em leis infraconstitucionais. Se os empresários não têm prerrogativa de foro, ou seja, não se encaixam em nenhuma situação que exija julgamento diretamente na segunda instância (os TRFs ou Tribunais de Justiça estaduais) ou em tribunais superiores como o STJ e o STF, as investigações só podem correr na primeira instância. Não é necessário ser um constitucionalista renomado para compreender que o princípio do juiz natural vem sendo violado não apenas na investigação contra os oito empresários, mas em quase toda a totalidade dos inquéritos abusivos, que, à exceção de alguns poucos parlamentares, têm se voltado apenas contra cidadãos brasileiros sem foro privilegiado.
Para não ter de encarar diretamente a questão do juiz natural, Moraes alegou que remeter a investigação para a primeira instância seria “prematuro”: “Ainda que esta investigação se encontre em fase inicial, seria absolutamente prematuro proceder ao declínio de competência desta Suprema Corte, ainda mais em momento anterior à análise, pela Polícia Federal, dos elementos colhidos a partir das buscas e quebras de sigilo realizadas nos autos”, escreveu o ministro. Equivoca-se redondamente, pois a necessidade de o caso tramitar na primeira instância deriva do perfil do investigado, não das provas eventualmente encontradas contra ele; além disso, a afirmação reforça mais uma vez a impressão de que a Polícia Federal está realizando uma devassa que vai muito além do que tenha relação com as conversas tornadas públicas e que deram origem a toda a série de medidas cautelares contra os empresários. Em outras palavras – que, obviamente, Moraes jamais usaria abertamente –, como a “pescaria probatória” ainda não terminou, fica tudo como está. Voltamos a repetir: ainda que Moraes julgue sinceramente estar protegendo a democracia brasileira, ainda que ele creia estar agindo dentro das “quatro linhas” da Constituição, na prática o que temos é arbítrio sobre arbítrio.
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E é por isso que nem há muita razão para comemorar outra decisão de Moraes, a que desbloqueou as contas bancárias de Hang e dos outros sete empresários. Como o Sete de Setembro já passou, “não configura-se (sic) mais necessária a manutenção do bloqueio dos ativos financeiros das pessoas nominadas”, afirma Moraes. E erra novamente, pois o fato é que o bloqueio de contas jamais foi necessário. Obviamente, nenhuma das demais medidas cautelares ainda em vigor foi ou é necessária, pois as conversas não continham o menor indício de qualquer crime que justificasse a investigação, mas no caso do bloqueio das contas há um abuso adicional, pois nem mesmo a Polícia Federal julgou conveniente fazer tal solicitação; ela partiu do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), como o próprio Moraes admitiu na decisão que autorizou a operação de 23 de agosto.
O desbloqueio das contas, assim, não chega a mover toda a investigação um milímetro sequer na direção de uma normalidade democrática. Os princípios da ampla defesa e do juiz natural, o direito ao devido processo legal, os papéis de cada órgão ou instituição na condução do inquérito, tudo isso continua a ser violado acintosamente por Moraes – independentemente das intenções e convicções que o guiem –, em alguns casos com o apoio do plenário do Supremo. Inquéritos que nem deveriam existir são árvores envenenadas que, permanentemente alimentadas por parte significativa da opinião pública, da comunidade jurídica e da classe política, continuam dando frutos podres: ontem, a censura a veículos de comunicação e a violação da imunidade parlamentar; hoje, a instituição de “crimes de pensamento” e “crimes de cogitação”.