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O CEO da Tesla e dono do X, Elon Musk, durante evento na Itália em dezembro de 2023.
O CEO da Tesla e dono do X, Elon Musk, durante evento na Itália em dezembro de 2023.| Foto: Angelo Carconi/EFE/EPA

Na sequência da divulgação da versão brasileira dos “Twitter Files”, o bilionário Elon Musk, proprietário da rede social X, o antigo Twitter, passou os últimos dias tendo na mira o ministro do STF Alexandre de Moraes. Na semana passada, o jornalista Michael Shellenberger, em parceria com a Gazeta do Povo, divulgou e-mails internos do Twitter em que consultores jurídicos da empresa consideravam abusivas e politicamente motivadas várias decisões de suspensão de acessos a perfis e pedidos de acesso a dados de usuários. Na manhã do último sábado, Musk perguntou a Moraes por que ele “exige tanta censura no Brasil”; as mensagens seguintes foram subindo o tom: o empresário afirmou que as únicas opções para Moraes seriam a renúncia ou o impeachment e o chamou de “ditador brutal”.

Além das críticas a Moraes, Musk prometeu restaurar o acesso às contas derrubadas (e que hoje só podem ser lidas por usuários fora do Brasil ou que usam VPNs), e disse que tornaria públicos todos os pedidos de derrubada, explicando como eles violariam as leis brasileiras. Até a tarde desta quarta-feira, nenhuma das promessas de Musk tinha sido cumprida – ele afirmou que só poderia fazê-lo depois de garantir a segurança de funcionários do X no Brasil, que corriam o risco de serem presos, de acordo com o bilionário. A única conta parcialmente restabelecida foi a do canal Terça Livre, mas que ainda exige o uso de VPN.

Em suma, e ainda que não tivesse dito nada do que disse especificamente sobre Moraes, Musk prometera desrespeitar uma decisão judicial, o que bastou para empolgar um lado do debate público e enfurecer o outro. Não é nosso objetivo, no momento, discutir se o dono do X estaria certo ou não caso levasse a cabo sua promessa; muitas páginas de boa filosofia política já foram escritas a respeito da desobediência a ordens consideradas injustas – e aqui também não pretendemos nos debruçar sobre as determinações de Moraes, muitas das quais já foram bastante criticadas neste espaço; fato é que, se a mera promessa de um descumprimento de decisão judicial não é crime, o restabelecimento completo das contas poderia, sim, levar a um enquadramento pelo artigo 330 do Código Penal. O que nos importa, aqui, é analisar com serenidade a reação do próprio Moraes e inúmeras outras respostas cuja quantidade e intensidade demonstraram o quão longe ainda estamos de recuperar o pleno sentido da liberdade de expressão e o respeito ao devido processo legal no Brasil.

O ordenamento jurídico brasileiro não criminaliza a crítica, muito menos a crítica a autoridades, desde que inspirada pelo interesse público

Deixemos de lado, por ora, algumas reações bastante descabidas, como as que enxergam as afirmações e promessas de Musk como interferências ou ataques à soberania brasileira – o exagero, retórico ou sincero, reflete mais a polarização político-partidária do momento que o resultado de uma reflexão jurídica adequada. Importa, aqui, entender como as mensagens do bilionário deveriam ser tratadas em um país democrático. O dono do X misturou a crítica pura e simples – ainda que em termos bastante duros às vezes, como ao chamar Moraes de “ditador brutal” ou afirmar que ele deveria ter “vergonha” – com alegações factuais; por exemplo, a de que Moraes, ao pedir restrições a usuários da rede, ainda teria ordenado que a rede social alegasse violação a termos de serviço do X, e não decisões judiciais.

Se Moraes se sentiu ofendido em sua honra por qualquer dessas afirmações, o caminho normal seria o da representação ao Ministério Público, que então analisaria todo o caso para concluir pela oferta de uma denúncia criminal ou pelo arquivamento. E teria de fazê-lo usando critérios bem simples e conhecidos. Veja-se, por exemplo, o caso da crítica. Leve ou pesada, explícita ou sutil, irônica, sarcástica, debochada, bem ou mal argumentada, sem argumentação nenhuma, justa ou injusta, pouco importa: o ordenamento jurídico brasileiro não criminaliza a crítica, muito menos a crítica a autoridades, desde que inspirada pelo interesse público. Como já tivemos de lembrar neste mesmo espaço dias atrás (o que não é bom sinal, pois indica que ministros supremos andam se esquecendo disso com frequência), “quem não quer ser criticado, satirizado, fica em casa”, nas palavras já clássicas de... Alexandre de Moraes. O exercício do cargo público traz consigo o ônus de estar submetido ao escrutínio de todos os demais, e em uma democracia autoridade nenhuma poderia responder à crítica acionando o sistema persecutório estatal.

Já quanto às afirmações factuais, caso o MP visse indícios de possível crime contra a honra e resolvesse oferecer denúncia, ela teria de ser feita a um juízo de primeira instância – a não ser que o réu tenha alguma prerrogativa de foro. E, durante o julgamento, o réu teria a chance de se defender por meio da “exceção da verdade”, trazendo provas documentais ou testemunhais que comprovassem a veracidade daquilo que afirma. É o que dizem os códigos processuais.

E não é preciso estar no “time Musk” para admitir que Moraes não fez absolutamente nada do que deveria ter feito. Em vez disso, na noite de domingo, ele reagiu da única maneira que conhece: em decisões com erros factuais (Musk é dono, mas não o CEO do X), frases inteiras em maiúsculas, com negritos e exclamações, o ministro incluiu Musk no inquérito das “milícias digitais” e ainda abriu uma outra investigação, alegando possibilidade de “obstrução de Justiça” e “incitação ao crime”. Tudo como de costume: sem nexo nenhum entre os fatos e os crimes que se pretende investigar, sem provocação do Ministério Público, acumulando papéis de vítima, investigador e julgador, enfim, fazendo questão de entregar de bandeja mais argumentos que reforçam o caráter abusivo de todas as investigações que vêm sendo conduzidas desde 2019.

Na ausência de uma desobediência real a ordens judiciais – afinal, nenhum dos perfis suspensos passou a ser livremente visível em território brasileiro, e simplesmente prometer algo não é ilegal –, o ministro elevou as críticas ao patamar de possível crime e, mesmo sendo ele o atingido pelas declarações do bilionário, incluiu-o em um inquérito que corre no próprio Supremo, além de ordenar a abertura de uma segunda investigação. Tudo completamente errado, tudo completamente ilógico, tudo completamente arbitrário – tudo completamente condizente com o comportamento que Musk atribui a Moraes.

Mesmo quem discorda de Musk precisa, urgentemente, perceber que os métodos usados ultimamente para “defender a democracia” têm sido profundamente antidemocráticos

Não se defende a democracia criminalizando a crítica. Não se defende a democracia atropelando o devido processo legal, nem os princípios do juiz natural e o de que a Justiça só age quando provocada. Não se defende a democracia escanteando o Ministério Público e tomando para si todas as atribuições possíveis no processo penal. Não se defende a democracia pedindo censura a uma rede social inteira, como fizeram inúmeras personalidades mais à esquerda (e fazê-lo por meio dessa própria rede social, ainda por cima, revela enorme hipocrisia), nem promovendo regulamentações que vão sufocar a liberdade de expressão na internet.

Mesmo quem discorda de Musk precisa, urgentemente, perceber que os métodos usados ultimamente para “defender a democracia” têm sido profundamente antidemocráticos. O arbítrio não se torna “bom” só por ser dirigido contra aqueles de quem se discorda, nem se torna “legal” por vir na ponta de uma caneta em vez da ponta de um fuzil. Quem não se der conta disso o quanto antes acabará dando sua contribuição, voluntária ou involuntária, para um mergulho no autoritarismo que será diferente dos anteriores, mas que nos levará para o fundo da mesma forma.

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