Dentre as inúmeras vítimas da caneta censora de Alexandre de Moraes, o ex-deputado estadual paranaense Homero Marchese tem um “privilégio” duvidoso, e que só ressalta o caráter arbitrário da maneira como o STF vem agredindo a liberdade de expressão no Brasil: Marchese ao menos sabe a razão pela qual seus perfis em mídias sociais foram suspensos em novembro de 2022. Ele chegara a imaginar que a ordem estaria relacionada a publicações sobre urnas eletrônicas, mas o real motivo, descoberto posteriormente, era bem mais prosaico: o então deputado compartilhara um banner sobre palestras de ministros do STF em Nova York, com o comentário “oportunidade imperdível”.
As contas de Marchese no Facebook e no X foram restabelecidas ainda no fim de 2022, mas o mesmo não ocorreu com o perfil no Instagram, que era seu meio principal de contato com o público. Ele só foi reativado em maio de 2023 pela primeira instância da Justiça Federal no Paraná, para onde o caso havia sido enviado com o fim do mandato parlamentar – apesar de o STF jamais ter sido o foro correto para se julgar deputados estaduais, tarefa que é dos Tribunais de Justiça de cada estado. Marchese, então, ingressou com ação indenizatória e, no fim de maio deste ano, a 1.ª Vara da Justiça Federal em Maringá (PR) determinou que a União indenizasse o ex-deputado em R$ 20 mil por danos morais.
É essencial que a Justiça possa reconhecer e consertar os erros que ela mesma comete; quando é o próprio Supremo a errar, isso pode ser reconhecido por uma instância inferior
“Com o atraso de quase seis meses [período decorrido entre a reativação das contas no Facebook e X e a reativação da conta no Instagram], [Marchese] sofreu grande perda de comunicação, transtornos, constrangimentos e frustração consideráveis, situação que poderia ter sido resolvida com o imediato desbloqueio desde 24/12/2022”, escreveu o juiz José Jácomo Gimenes, alegando a existência de um “erro procedimental” que garante o direito à indenização. A bem da verdade, antes o erro estivesse apenas nesta demora, já que a censura contra Marchese violou o princípio do juiz natural, baseou-se em pura ilação – a de que o comentário “oportunidade imperdível” era uma incitação a atos de hostilidade contra os ministros – e, ainda por cima, levou em conta publicações que Marchese não fez, pois o relatório da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE atribuiu ao então deputado a publicação de banners apócrifos mencionando hotéis onde os ministros talvez estivessem hospedados, e o órgão não o procurou para saber se de fato ele teria publicado tais imagens.
A Advocacia-Geral da União, então, recorreu ao STF contra a decisão de Gimenes e a reclamação foi parar nas mãos de Moraes, que, em vez de se declarar suspeito ou impedido, por estar diretamente envolvido no caso, não apenas cassou a sentença que determinava a indenização, mas também ordenou que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) abra uma investigação contra Gimenes. O que o juiz teria feito de tão grave para tal? Havia alguma suspeita quanto à lisura do magistrado no caso em questão? Segundo a decisão de Moraes, o juiz de Maringá fez algo muito, muito mais sério que vender uma sentença: ele ousou afirmar que o Supremo, quem diria?, exagerou na dose.
Usando termos como “inaceitável”, “inadmissível” e “inimaginável”, Moraes acusa Gimenes de “interferir na condução dos trabalhos desta SUPREMA CORTE” (as maiúsculas são cortesia do ministro) – ainda que Gimenes não tenha revertido nenhuma decisão de Moraes ou de nenhum outro ministro. Segundo Moraes, “é impensável afirmar que decisão proferida em âmbito de Juizado Especial possa julgar o modo de condução e a legitimidade de atos judiciais tomados em processo em regular trâmite neste Supremo Tribunal”, e nenhuma sentença pode questionar a legitimidade de um inquérito como o que levou ao bloqueio das contas de Marchese.
Ora, é essencial que a Justiça possa reconhecer e consertar os erros que ela mesma comete; o ordenamento jurídico brasileiro o prevê. O argumento do erro jurídico vem sendo empregado a torto e a direito pelo próprio STF em seu processo de desmonte de Lava Jato – mais a torto que a direito, já que frequentemente os tais “erros” invocados pelos ministros para anular processos, prisões e multas não existem. Quando é o próprio Supremo a errar, isso pode ser reconhecido por uma instância inferior; se o processo porventura chegar aos tribunais superiores, que se discuta a existência ou não deste erro; o que não se pode fazer, de forma alguma, é simplesmente negar a priori a possibilidade de um magistrado de primeira ou segunda instância julgar que um tribunal superior cometeu equívocos, e muito menos ordenar uma investigação disciplinar contra o juiz que assim decide.
A propósito do julgamento recentemente concluído sobre a descriminalização da maconha, o ministro Luiz Fux queixou-se em termos bastante fortes, afirmando que o “Brasil não tem governo de juízes”. Se este julgamento, e outros nos quais a corte abraça o ativismo judicial, mostra que há ministros do Supremo com a pretensão de serem os governantes de facto do Brasil, outros episódios indicam que há ambições ainda maiores: há ministros que se enxergam como a encarnação da democracia, e a decisão contra Gimenes vai além, indicando que há ministros se julgando inquestionáveis por serem infalíveis – em um grau que nem mesmo confissões religiosas atribuem a seus líderes. Teremos passado da “juristocracia” para o absolutismo judicial?
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