Na última sexta-feira, dia 17, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, atendeu a um pedido do PSol e derrubou uma resolução do Conselho Federal de Medicina que proibia o emprego de um método específico, chamado de “assistolia fetal”, na realização de abortos em bebês com mais de 22 semanas de gestação, nos casos em que a legislação brasileira não prevê punição. A decisão é duplamente equivocada: um absurdo do ponto de vista estritamente legal, mas também um enorme retrocesso em termos civilizatórios.
No início de abril, o CFM havia publicado a Resolução 2.378/24, proibindo o uso da assistolia fetal “quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas”. Era um documento solidamente embasado não apenas em literatura médica, mas também na própria Constituição Federal, na legislação infraconstitucional e em documentos internacionais de direitos humanos. “Assistolia fetal”, é preciso recordar, é o nome bastante asséptico para um procedimento bárbaro: o de injetar uma substância no coração para, com isso, provocar uma parada cardíaca – no caso do aborto, com uma agravante: enquanto criminosos condenados à morte ou animais submetidos a eutanásia recebem anestesia, isso não ocorre com os bebês abortados por esse método.
Não cabe ao Judiciário dizer aos médicos como devem fazer seu trabalho – ao menos, não com o nível de detalhe técnico presente em documentos como a resolução que Moraes derrubou liminarmente
O PSol, sempre a postos para acionar o Judiciário em defesa do abortismo, recorreu ao STF alegando que o CFM estaria impondo um limite temporal para o exercício do suposto “direito” ao aborto, quando a lei não estabelece prazo algum. Moraes aceitou este argumento, acrescentando que a resolução “aparentemente se distancia de standards científicos compartilhados pela comunidade internacional” (destaque nosso) e impõe a médicos e gestantes “uma restrição de direitos não prevista em lei, capaz de criar embaraços concretos e significativamente preocupantes para a saúde das mulheres”. Em diversas ocasiões a Gazeta do Povo já defendeu que o artigo 128 do Código Penal não cria uma excludente de ilicitude, mas apenas de punibilidade, e para isso cotejamos a redação deste trecho com a de outros artigos da lei penal que abrem exceções semelhantes. Por isso a menção a “direitos” na decisão já é bastante problemática; no entanto, mesmo que admitíssemos a interpretação equivocada do artigo 128, restaria uma série de outros problemas na decisão.
Juristas ouvidos pela Gazeta do Povo e o próprio CFM apontaram o fato de o conselho simplesmente não ter sido ouvido no intervalo de quase um mês e meio entre o momento em que a ação foi protocolada e a decisão liminar de Moraes. Mais grave ainda é o fato de a liminar contrariar a jurisprudência do STF a respeito da autonomia de órgãos como o CFM. O próprio Moraes fora relator de um recurso extraordinário em que o STF “proclamou a autonomia das agências reguladoras na definição das regras disciplinadoras do setor regulado, observados os limites da lei de regência, ante a complexidade técnica dos temas envolvidos que exigem conhecimento especializado e qualificado acerca da matéria objeto da regulação” – os conselhos profissionais não são agências reguladoras, mas já tiveram seu regime jurídico equiparado ao das agências. Em outras palavras, não cabe ao Judiciário dizer aos médicos como devem fazer seu trabalho – ao menos, não com o nível de detalhe técnico presente em documentos como a resolução que Moraes derrubou liminarmente.
Pois é exatamente disso que se trata: o CFM está instruindo os médicos sobre como interromper uma gravidez em estado já avançado. A gestação termina tanto com o aborto provocado quanto com a antecipação do parto; a diferença está no fato de que, no primeiro caso, a morte do bebê é certa, enquanto no segundo ele ao menos tem a chance de viver e ser adotado por uma família que o deseje, caso a mãe biológica não queira ficar com ele por razões que consideramos bastante compreensíveis nos casos que envolvem violência sexual. E a resolução não protege apenas a vida da criança, mas também da gestante, já que a antecipação do parto oferece menos risco à mulher que todo o procedimento que envolve a assistolia fetal e a posterior expulsão do feto morto. Em resumo: trata-se de uma norma tecnicamente e juridicamente embasada, definida por entidade que tem autonomia para fazê-lo, de forma a cumprir o objetivo buscado (o fim da gravidez) da forma menos arriscada para os dois seres humanos envolvidos. Derrubar algo assim é um absurdo em todos os sentidos.
O óbvio tem de ser repetido, infelizmente: diante de uma situação em que há ao menos a chance – não a certeza absoluta, mas uma chance – de sobrevivência de um ser humano indefeso e inocente, empregando-se todos os meios disponíveis para tal, escolher deliberadamente a eliminação deste ser humano, sem nenhuma justificativa plausível, é sinal de uma enorme crise moral em nossa sociedade. Pleitear algo assim e querer impedir que profissionais se empenhem em salvar ambas as vidas – empenho este que está no âmago da missão de todo médico – é nada menos que barbárie, agora judicialmente chancelada.
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