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Editorial

O Telegram e o fim da liberdade de debater

Telegram cumpriu determinação de Alexandre de Moraes no início da tarde de quarta-feira (10). (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil.)

Ainda existe debate livre no Brasil sobre projetos de lei em tramitação no Congresso? Se depender do Supremo Tribunal Federal e do ministro Alexandre de Moraes, não mais. Depois de um primeiro episódio de intimidação contra as big techs que publicaram conteúdos contrários ao PL 2.630/20, o ministro voltou a interferir na discussão de forma ainda mais drástica nesta quarta-feira, ordenando que o aplicativo de mensagens Telegram apagasse um texto enviado a seus usuários e enviasse em seu lugar uma outra mensagem redigida pelo próprio STF, sob pena de ser suspenso em todo o território nacional por 72 horas em caso de descumprimento – ainda no começo da tarde de quarta-feira, o aplicativo cumpriu a decisão.

Na terça-feira, dia 9, o Telegram enviara aos usuários do aplicativo uma mensagem que iniciava com os dizeres “A democracia está sob ataque no Brasil. A Câmara dos Deputados deverá votar em breve o PL 2630/2020, que foi alterado recentemente para incluir mais de 20 artigos completamente novos que nunca foram amplamente debatidos”, e seguia listando os pontos que considerava mais problemáticos. De acordo com a mensagem, por exemplo, o PL irá “forçar os aplicativos a removerem proativamente fatos ou opiniões que ele [o governo] considera ‘inaceitáveis’” e “torna as plataformas digitais responsáveis por decidir qual conteúdo é ‘ilegal’ em vez dos tribunais – e fornece definições excessivamente amplas de conteúdo ilegal”. Por fim, o Telegram alega que “o Brasil já possui leis para lidar com as atividades criminosas que esse projeto de lei pretende abranger (incluindo ataques à democracia)” e pede que os usuários entrem em contato com seus representantes no Congresso para manifestar sua opinião sobre o PL 2.630.

Mais uma vez Moraes age como se coubesse ao Poder Judiciário decidir o que é ou não correto ou verdadeiro, tutelando assim um debate que deve ser livre

Ministros do governo Lula, parlamentares petistas e aliados reagiram imediatamente, assim como já haviam feito no caso da mensagem publicada pelo Google. O ministro Flávio Dino, da Justiça, afirmou que o Telegram pretendia “provocar outro 8 de janeiro”; o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) publicou uma charge equiparando a logomarca do Telegram, um avião de papel, a um caça nazista da Segunda Guerra Mundial. Se algum deles chegou a acionar o STF não se sabe, pois a decisão de Moraes não traz essa informação; fato é que o ministro tomou para si a missão de arbitrar o debate público sobre o PL das Fake News e decidir o que pode ou não pode ser dito, em uma decisão que erra na forma e no conteúdo.

Erra na forma, porque a decisão, mais uma vez, é tomada dentro do mais antigo entre os inquéritos abusivos que Moraes conduz, o 4.781, das fake news. Por mais que ele tenha o objetivo de investigar supostos ataques a membros do STF, hoje ele virou um guarda-chuva no qual cabe absolutamente tudo que Moraes queira ali incluir. Desta vez, para justificar que o caso do Telegram fique ali contemplado, o ministro chega ao ponto de afirmar que “a conduta do Telegram configura, em tese, (...) flagrante induzimento e instigação à manutenção de diversas condutas criminosas praticadas pelas milícias digitais investigadas no INQ 4.874, com agravamento dos riscos à segurança dos parlamentares, dos membros do Supremo Tribunal Federal e do próprio Estado Democrático de Direito”, sem oferecer nenhuma evidência concreta de que uma mensagem estimulando usuários de um aplicativo a procurar seus representantes eleitos configuraria tamanha ameaça à integridade física de alguém, muito menos à manutenção da democracia no país.

E erra no conteúdo, porque mais uma vez Moraes age como se coubesse ao Poder Judiciário decidir o que é ou não correto ou verdadeiro, tutelando assim um debate que deve ser livre. Não deixa de ser irônico que, enquanto o ministro do Supremo, sem citar uma única lei que o Telegram tenha desrespeitado, se contenta em alegar a existência de relações de causa e efeito sem demonstrá-las de forma minimamente satisfatória, em uma espécie de “lógica freestyle”, o Telegram incluiu uma série de notas de rodapé em sua mensagem, remetendo a artigos da versão mais recente do PL 2.630, a que quase foi votada no plenário da Câmara na semana passada. Isso permite, inclusive, que o leitor possa cotejar as alegações do Telegram com o texto legal e concluir se o aplicativo acerta ou erra na análise que faz do projeto de lei. Com isso, aqueles que defendem o PL 2.630 têm, inclusive, os meios de vir a público e contestar as afirmações feitas na mensagem do Telegram. É assim que funcionam as democracias quando está em jogo a análise de um projeto de lei no parlamento.

Uma camada adicional de abuso, neste caso, está na exigência de publicação do texto em que o Telegram afirmava que sua mensagem anterior “caracterizou FLAGRANTE e ILÍCITA DESINFORMAÇÃO atentatória ao Congresso Nacional, ao Poder Judiciário, ao Estado de Direito e à Democracia Brasileira, pois, fraudulentamente, distorceu a discussão e os debates sobre a regulação dos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada (PL 2630), na tentativa de induzir e instigar os usuários à [sic] coagir os parlamentares”. À exceção de casos envolvendo o direito de resposta (que é sempre redigido pelo ofendido, não pela Justiça), ninguém pode ser forçado a publicar algo de que discorde frontalmente. Salta aos olhos, ainda, que o Telegram tenha sido obrigado a publicar o que, no fim das contas, é a admissão de um ilícito – repare-se no uso dos termos “ilícita” e “fraudulentamente”. Em uma ironia cruel, um aplicativo de origem russa é submetido a um procedimento semelhante às confissões forçadas que dissidentes do regime soviético eram obrigados a assinar durante o terror comunista.

Ser contrário a um projeto de lei não é crime, e tampouco o é apresentar os argumentos que embasam essa oposição; se tais argumentos são ou não razoáveis, cabe à sociedade dizer, não a um juiz

Não é segredo para ninguém que as big techs têm se oposto ao PL 2.630, como também é notório que há inúmeros outros setores da sociedade civil favoráveis ao texto. Todos eles têm direito total a apresentar seus argumentos na arena pública, com os meios de que dispõem, e a tentar levar suas opiniões ao maior número possível de pessoas – curiosamente, os defensores do projeto podem inclusive se fazer ouvir por meio de seus perfis nas próprias plataformas que hoje são contrárias ao PL 2.630. Da mesma forma, o estímulo a que cidadãos procurem seus representantes no parlamento, agora encarado como ameaça, é parte fundamental do jogo democrático. São os deputados e senadores que, em última instância, votam os projetos; nada mais natural que todos os esforços, dos favoráveis e dos contrários, tenham como objetivo final sensibilizar os parlamentares, seja diretamente, seja por meio da mobilização da opinião pública.

As recentes decisões de Moraes – não apenas esta que envolve o Telegram, mas também a do início de maio contra Google, Meta (dona do Facebook, do Instagram e do WhatsApp), Spotify e Brasil Paralelo – desmontam toda essa lógica da democracia. Elas impedem o debate sadio, com argumentação e contra-argumentação, ao praticamente criminalizar um tipo de opinião; e colocam o STF em uma posição que não cabe nem ao Judiciário, nem a qualquer ente do poder público, a de árbitro da veracidade ou falsidade de opiniões e análises. Quem tem real compromisso com a defesa da liberdade de expressão – e isso inclui tanto defensores quanto opositores do PL 2.630 – não tem como promover ou endossar o cerceamento que vem sendo feito a uma posição lícita em um debate lícito. Ser contrário a um projeto de lei não é crime, e tampouco o é apresentar os argumentos que embasam essa oposição; se tais argumentos são ou não razoáveis, cabe à sociedade dizer, não a um juiz. Ao menos é assim nas democracias.

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