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O ministro Alexandre de Moraes, durante sessão do STF em 25 de junho.
O ministro Alexandre de Moraes, durante sessão do STF em 25 de junho.| Foto: Antonio Augusto/SCO/STF

O Congresso Nacional nem mesmo chegou a discutir com alguma profundidade os projetos de lei que pretendem anistiar os envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023, na Praça dos Três Poderes, e dois ministros do STF já estão se empenhando em derrubar a ideia. Acostumados a ignorar os deveres de discrição que caracterizam a magistratura, o decano da corte, Gilmar Mendes, e o relator dos processos do 8 de janeiro no Supremo, Alexandre de Moraes, afirmaram, respectivamente, que “não há clima” para uma anistia no Brasil, e que a palavra final sobre um eventual perdão aos manifestantes caberia ao STF – ambas as afirmações foram feitas enquanto os ministros participavam, em Portugal, do Fórum Jurídico de Lisboa, evento que ficou conhecido como “Gilmarpalooza”.

Não é nosso objetivo, neste momento, analisar a questão específica da anistia. A Gazeta do Povo tem estado na linha de frente da denúncia das arbitrariedades cometidas pela Procuradoria-Geral da República e pelo STF na repressão aos atos do 8 de janeiro. Denúncias e condenações sem individualização da conduta nem conjunto probatório que ligue os réus aos atos que lhes são atribuídos, violação do princípio do juiz natural, penas desproporcionais, prisões preventivas desnecessárias e abusivas, possível cerceamento da defesa em julgamentos por plenário virtual – tudo isso mostra que não está havendo justiça, mas justiçamento. Se a anistia é ou não o melhor remédio para desfazer essa injustiça, é debate que será travado em outra oportunidade. Importa, aqui, mostrar o absurdo contido especificamente na fala de Alexandre de Moraes, ao deixar implícito que o Congresso poderia até aprovar uma anistia, mas que ela teria de ser chancelada pelo STF.

Alexandre de Moraes dá a entender que enxerga o STF como uma espécie de “instância revisora” das decisões de outro poder, o Legislativo

A Constituição Federal, no artigo 48, afirma que “cabe ao Congresso Nacional (...) dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: (...) VIII – concessão de anistia”. No entanto, a mesma Constituição, no artigo 5.º, inciso XLIII, afirma haver crimes que não podem ser objeto de anistia: “a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos”. Por sua vez, a lei dos crimes hediondos (8.072/90) não lista entre eles os crimes contra o Estado de Direito pelos quais centenas de brasileiros estão sendo condenados. Mesmo o crime de associação criminosa, que tem sido imputado aos manifestantes condenados, só é considerado hediondo quando “direcionado à prática de crime hediondo ou equiparado”, o que também não é o caso.

Em outras palavras, a Constituição dá ao Congresso, de forma bastante inequívoca, o poder para anistiar os crimes pelos quais os manifestantes do 8 de janeiro estão sendo condenados – se é conveniente fazê-lo, repetimos aqui, não é discussão que pretendemos fazer agora. Mas Alexandre de Moraes quer fazer parecer que não é assim. “Quem admite ou não anistia é a Constituição Federal, e quem interpreta a Constituição Federal é o Supremo”, afirmou, insinuando que, se os ministros acharem por bem derrubar uma eventual anistia aprovada pelo Congresso, irão fazê-lo.

A hipótese que Moraes levanta vai muito além do controle de constitucionalidade que faz parte das funções do Poder Judiciário; o ministro dá a entender que enxerga a corte da qual faz parte como uma espécie de “instância revisora” das decisões de outro poder, o Legislativo. É evidente que, se o Congresso aprova uma lei contrária à Constituição, é papel do STF derrubá-la, mas no caso de uma possível anistia aos condenados do 8 de janeiro nem mesmo se pode dizer que cabem interpretações diversas. A Carta Magna diz que o Congresso pode aprovar anistias, e lista os crimes que não podem ser anistiados. Se os crimes dos quais os manifestantes estão sendo acusados não estão nestas exceções, e de fato não estão, uma anistia seria constitucional; para decidir o contrário, o STF estaria diminuindo arbitrariamente os poderes que a Constituição deu ao Congresso Nacional – isto, sim, uma violação enorme e antidemocrática da Carta Magna.

Há bastante tempo o Supremo vem rebaixando o Congresso Nacional, com os ministros tomando para si o papel de legisladores. Começaram dizendo “se vocês não decidirem, decidiremos nós” – ignorando que, no processo legislativo, o próprio ato de resolver não levar um projeto a votação, ou a rejeição deste projeto, já é uma decisão. Agora, já dizem “se não gostarmos do que vocês decidirem, decidiremos nós”. Isso tem valido em assuntos dos mais diversos, da definição do que é crime à governança de estatais, passando pelas políticas tributária e fundiária. A manifestação de Moraes sobre a possível anistia demonstra que já nem é preciso esperar que uma lei seja aprovada e contestada no STF: o ativismo judicial partiu para a fase do “ataque preventivo” – neste caso, com o objetivo de preservar as decisões abusivas que vêm do próprio Supremo.

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