Não há dúvidas de que a aprovação de boa parte das medidas do pacote anticorrupção proposto pelo Ministério Público Federal e apoiado por diversos segmentos da sociedade organizada irá melhorar o ambiente institucional brasileiro. Mas, dadas as movimentações palacianas, alterações de texto dos projetos e debates a portas fechadas da comissão especial que analisa o conjunto dessas propostas, é preciso avaliar os riscos de que algumas delas, como a criminalização do caixa dois, possam gerar impunidade de políticos e partidos que praticaram o delito antes da aprovação da lei.
Atualmente, os acusados de caixa dois são enquadrados no artigo 350 do Código Eleitoral, que descreve o crime de “Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais”. Uma conceituação vaga, em comparação com a formulação que o pacote das Dez Medidas Contra a Corrupção pretendia introduzir na Lei das Eleições, de 1997, e na Lei dos Partidos Políticos, de 1995: “Manter, movimentar ou utilizar qualquer recurso ou valor paralelamente à contabilidade exigida pela legislação eleitoral”. Em seu parecer, o relator, deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS), optou por alterar o próprio Código Eleitoral e definir o caixa dois como “Arrecadar, receber, manter, movimentar, gastar ou utilizar, o candidato, o administrador financeiro ou quem, de fato, exerça essa função, o dirigente e o integrante de órgão de direção de partido político ou coligação, recursos, valores, bens ou serviços estimáveis em dinheiro, paralelamente à contabilidade exigida pela legislação eleitoral”.
Sem gambiarras destinadas a garantir de forma explícita a impunidade, o texto é uma avanço
O raciocínio dos que desejam a impunidade é simples. Para eles, definir o caixa dois como um tipo penal tenderia a produzir o efeito colateral de anistiar todos os políticos que vêm sendo processados pela prática, inclusive aqueles que têm caído na malha de investigações da Operação Lava Jato. Isso porque, ao criar o novo tipo penal, os acusados poderão argumentar que o caixa dois, antes da aprovação da lei, não era crime – tese controversa, pois o caixa dois já está presente, ainda que de maneira vaga, no Código Eleitoral. Ou, então, que, como qualquer nova lei não pode retroagir para prejudicar os cidadãos, não seria aplicável ao seu caso.
Já é notório que parte da classe política gostaria de fazer naufragar a Lava Jato, ou produzir mudanças legislativas para neutralizar os efeitos da operação. Nunca é demais lembrar das gravações de Sérgio Machado, ex-diretor da Transpetro, que escancarou a intenção do senador Romero Jucá (PMDB-RR) de “estancar a sangria” produzida pela Lava Jato, mediante um “grande acordo nacional”. Por isso, se é uma boa ideia inserir na legislação a definição específica de caixa dois – inclusive diferenciando recursos que são frutos da roubalheira daqueles que passam ocultos na contabilidade eleitoral apesar de terem origem legal –, não se pode permitir brechas que beneficiem todo um grupo de políticos que se valeram de atos desonestos no passado. Isso poderia ocorrer, por exemplo, caso os deputados resolvessem incluir explicitamente a anistia no projeto de lei – uma possibilidade que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), não nega. Seria uma repetição da manobra tentada na calada da noite em setembro, abortada no último instante e que, de tão vergonhosa, não foi assumida por nenhum partido ou deputado.
Sem gambiarras destinadas a garantir de forma explícita a impunidade, o texto é uma avanço. Tanto Lorenzoni quanto outros deputados garantem que seu substitutivo não implica em anistia, mas inevitavelmente o Supremo Tribunal Federal será chamado a dirimir a dúvida. E, ali, os ministros saberão demonstrar que o mero aperfeiçoamento da lei não pode ser usado como base para livrar da Justiça aqueles que desejam se aproveitar de crimes como o caixa dois.