Há poucos dias, nos autos da Arguição de Descumprimento de Prefeito Fundamental (ADPF) de n.º 153, movida pela Ordem dos Advogados do Brasil, a Procuradoria-Geral da República (Ministério Público Federal), por meio do seu Procurador Geral, Roberto Monteiro Gurgel Santos, apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF) um parecer contrário à reinterpretação da chamada Lei da Anistia.
Para relembrarmos a polêmica sobre o tema, já exposta neste mesmo espaço, podemos dizer que, de um lado, encontram-se aqueles que entendem que a Lei da Anistia teria sido mesmo "ampla, geral e irrestrita", baseados em argumentos tais como: a) a amplitude da redação do art. 1.º da Lei n.º 6.683/1979; b) as garantias constitucionais previstas no art. 5.º, da Constituição Federal de 1988: "XXXIX não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;" e "XL a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;" c) que a previsão de que o crime de tortura seria insuscetível à anistia teria entrado em vigor apenas com a Lei n.º 9.455/1997; e d) que, em termos práticos, todos os crimes já estariam prescritos.
De outro lado, os que sustentam a inaplicabilidade da Lei da Anistia, baseando-se, fundamentalmente, nos seguintes entendimentos: a) o de que o "espírito" da Lei da Anistia seria o de beneficiar apenas os opositores ao regime; b) o de que não se poderia admitir uma autoanistia, ou seja, os ofensores não poderiam promover um perdão a si mesmos; c) o de que os crimes praticados pelos militares, com destaque especial para a tortura, não poderiam ser caracterizados como crimes políticos; d) o de que os crimes praticados nos "anos de chumbo" seriam crimes contra a humanidade e que, por isso, seriam imprescritíveis e não sujeitos a anistias, com base em diplomas internacionais dos quais o Brasil seria signatário; e) o de que os prazos prescricionais estariam suspensos em decorrência da não abertura de muitos dos arquivos da época da ditadura; e f) o de que a redação da lei não seria clara.
Pois bem, logo após a divulgação do parecer do Ministério Público Federal, várias entidades se manifestaram. Umas favoravelmente e outras claramente contrárias ao entendimento firmado pela Procuradoria-Geral da República. Nesse grupo, aliás, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), autora da ADPF, foi enfática: "Parecer da PGR sobre a Lei da Anistia é equívoco e legitima Tortura".
Ocorre que, ao nos debruçarmos sobre o referido parecer, a conclusão a que chegamos não é exatamente a mesma daquela à que chegou a OAB, notadamente no que tange à afirmação de que ele "legitima a tortura".
Façamos, então, justiça a ele. A principal virtude do parecer emitido pela Procuradoria-Geral da República é a de tratar do tema de forma contextualizada. É a de negar a análise do assunto de forma isolada da sua própria história. É a de enfatizar o espírito de pacificação social que tomava conta do país naquele momento.
Nesse sentido, parece-nos preciosa a menção ao Manifesto dos Artistas, lido no plenário do Senado Federal: "... Foram longos demais esses anos de "caça às bruxas" e perseguições. Justamente quando entre os anseios do tão sofrido povo brasileiro cresce a necessidade urgente de paz, de reconstrução de uma Nação conciliada, justamente quando o Presidente jura fazer de nosso país uma Democracia, é concebida uma Anistia repleta de parágrafos, de itens que restringem e, portanto, reprimem novamente. Não podemos admitir, sobretudo, que quando se pretende uma conciliação Nacional sejam anistiados uns e marginalizados outros. E mais: perguntamos a todos e a nós mesmos, o número de mortos e de desaparecidos não se sabe ainda. No entanto este não é o momento em que se devam reascender divergências. E nem mesmo perguntar por mais evidente que seja a resposta quem atirou a primeira pedra. É o momento vital de falar, de gritar, em nome dos mais elementares princípios de respeito humano, aos sentimentos cristãos: Chega de rancores! Chega de ódios! Paz! Anistia ampla, geral e irrestrita."
Mais interessante ainda é o destaque à mudança de entendimento da própria OAB, que hoje é justamente a autora da ADPF que defende a reinterpretação da Lei da Anistia. Isso porque, à época, em parecer escrito pelo então Conselheiro Federal Sepúlveda Pertence posteriormente ministro do STF a OAB assim se posicionou: "... 17. Nem a repulsa que nos merece a tortura impede reconhecer que toda a amplitude que for emprestada ao esquecimento penal desse período negro de nossa História poderá contribuir para o desarmamento geral, desejável como passo adiante no caminho da democracia. 18. De outro lado, de tal modo a violência da repressão política foi tolerada quando não estimulada, em certos períodos, pelos altos escalões do Poder que uma eventual persecução penal dos seus executores materiais poderá vir a ganhar certo colorido de farisaísmo. 19. Não é preciso acentuar, de seu turno, que a extensão da anistia aos abusos da repressão terá efeitos meramente penais, não elidindo a responsabilidade civil do Estado, deles decorrentes...."
Assim, não há como se alegar falta de coerência à construção de raciocínio feita pelo Ministério Público Federal. Como assinala o procurador-geral da República: "Por maior que seja a repulsa a acontecimentos degradantes de violência física e moral que marcaram aquele período de nossa história, não é possível sucumbir às próprias pré-compreensões, de modo a encobrir o sentido jurídico, político e simbólico da anistia como verificada".
Em suma, estamos diante de um tema que, definitivamente, não pode ser analisado fora do seu contexto histórico. Como também já registramos neste espaço, preocupa-nos que o desejo de punição seja (ou ao menos pareça ser) muito mais intenso do que o desejo pela busca da verdade e por uma efetiva reconciliação social. Entendemos que algo muito mais importante do que a ADPF que busca a revisão da Lei da Anistia é, por exemplo, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) de n.º 4.077, pela qual se sustenta a inconstitucionalidade das Leis 8.159/91 e 11.111/05. Pela qual se defende, portanto, a abertura definitiva dos arquivos da ditadura e o acesso a documentos que, até hoje, são considerados sigilosos. Leis essas que, sem dúvida, escondem a verdade e impedem a reconstrução da história de pessoas e de todo um país.
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