Recentemente, após decisões conflitantes em duas varas diferentes da Justiça do Trabalho no estado de São Paulo sobre a existência de vínculo empregatício entre motoboys e aplicativos de entrega, a Gazeta do Povo lembrou, neste espaço, que boa parte da insegurança jurídica que permitia a continuação da controvérsia residia no fato de que os tribunais superiores ainda não haviam se pronunciado sobre o tema. Na semana passada, entretanto, o Tribunal Superior do Trabalho concedeu a primeira decisão que pode colocar um fim nas disputas judiciais envolvendo aplicativos e motoristas ou motoboys. A Quinta Turma da corte decidiu, por unanimidade, que não existe vínculo empregatício entre motoristas e a empresa Uber, dona do aplicativo de mesmo nome.
Um motorista da cidade de Guarulhos (SP) havia pleiteado, na Justiça, o reconhecimento do vínculo, e a 15.ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo lhe deu ganho de causa em agosto de 2018. A Uber recorreu da decisão, levando ao julgamento encerrado no último dia 5, em que o relatório do ministro Breno Medeiros foi aceito pelo ministro Douglas Alencar Rodrigues e pelo desembargador convocado João Pedro Silvestrin. Por mais que a decisão não tenha efeito vinculante – o que obrigaria todos os tribunais da Justiça trabalhista a seguirem a mesma orientação –, ela estabelece o precedente que faltava para pacificar uma disputa que poderia inviabilizar um segmento importante da chamada “economia compartilhada”.
Em um país onde a liberdade econômica ainda patina, o caso dos aplicativos é exemplar para saber se estamos aprendendo a deixar para trás o afã hiper-regulatório
Quando se trata dos aplicativos de transporte, o centro das discussões sobre vínculo empregatício costuma estar na existência ou não da subordinação, uma das características que precisam existir simultaneamente para se caracterizar uma relação de empregador e empregado – as outras são pessoa física (o contrato é feito entre a empresa e uma pessoa física), pessoalidade (somente o contratado pode realizar o serviço), habitualidade ou não eventualidade (o trabalho é prestado de forma habitual ou periódica) e onerosidade (o contratado recebe pelo trabalho que realiza), com alguns especialistas acrescentando o que chamam de alteridade (o salário está garantido e deve ser pago independentemente do desempenho da empresa). O TRT2 havia decidido pelo reconhecimento do vínculo afirmando que o motorista tem de obedecer a uma série de normas estabelecidas pela Uber, o que não deixa de ser verdadeiro, mas é um aspecto secundário quando se considera que o motorista tem liberdade para trabalhar quando bem entender, podendo recusar corridas e até mesmo estar cadastrado em aplicativos concorrentes. Este foi um dos argumentos usados pelo relator, e Medeiros continuou argumentando que o pagamento recebido pelo motorista nem pode ser considerado salário em sentido estrito, mas o resultado de uma divisão entre aplicativo e indivíduo em uma parceria comercial.
Por outro lado, é preciso reconhecer que nem sempre os motoristas se veem em condições de exercer plenamente esta autonomia. O Brasil ainda se recupera lentamente de uma recessão gravíssima e o desemprego continua em níveis alarmantes; neste contexto, o trabalho com aplicativos surge como uma opção – segundo a Pnad Contínua, quase 3,6 milhões de brasileiros trabalharam como motoristas de aplicativo em 2018, quase 30% a mais que em 2017. Para muitas dessas pessoas, não se trata de complementar um outro salário: dirigir se tornou a única fonte de renda da pessoa ou da família. O excesso de oferta joga para baixo os preços das corridas, beneficiando o passageiro, mas levando muitos motoristas a fazer jornadas longas para fechar as contas no fim do mês. Mesmo assim, o reconhecimento do vínculo seria o caso clássico do remédio que, em dose excessiva, se torna veneno: o modelo de negócios se tornaria inviável, fechando as portas a vários motoristas que teriam de buscar outra oportunidade em um mercado de trabalho ainda hostil, apesar da recuperação recente.
No julgamento, os três membros da Quinta Turma ainda ressaltaram a importância de haver alguma regulamentação para a operação dos aplicativos, especialmente na questão trabalhista – outro tema controverso, pois muitos municípios passaram a estabelecer regras nada razoáveis, por exemplo sobre idade dos veículos e local de emplacamento, extrapolando os parâmetros que os próprios aplicativos consideram ideais em termos de segurança para a prestação do serviço. Em um país que ainda tem muito a aprender em termos de liberdade econômica, sempre apresentando desempenhos medíocres em rankings internacionais, o caso dos aplicativos é exemplar para saber se estamos aprendendo a deixar para trás o afã hiper-regulatório e o engessamento que impedem muitos negócios de florescer, gerando emprego e renda.