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Editorial

Arte, nudez e um debate distorcido

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(Foto: Divulgação)

A opinião pública brasileira se mobilizou nas últimas semanas para questionar duas manifestações artísticas que envolveram a presença ou a participação de crianças e adolescentes. No primeiro caso, o da exposição Queermuseu, realizada pelo Santander Cultural, em Porto Alegre, obras com conteúdo sexual explícito contavam com a visitação do público infantil, inclusive com excursões de escolas ao espaço cultural. No segundo, a performance La Bête tinha a participação do bailarino e coreógrafo Wagner Schwartz, que ficava nu em uma área delimitada, sendo que o público poderia “manipulá-lo”. Em São Paulo, no Museu de Arte Moderna (MAM), uma criança aparentando não mais de 5 anos interagiu com o artista – com a repercussão do fato, surgiram fotos mostrando situação semelhante durante a execução da mesma performance, anteriormente, em Salvador.

A indignação popular deu origem a um movimento no sentido contrário, liderado especialmente por artistas e formadores de opinião, que têm se esforçado para classificar como “censuradores” aqueles que reclamam das manifestações artísticas em questão. Os mais exagerados, recorrendo à falácia da “rampa escorregadia” (tradução literal do inglês slippery slope, embora o termo mais adequado talvez seja “bola de neve”), afirmam que não estamos muito longe da distopia imaginada por Ray Bradbury em Fahrenheit 451, obra que descreve uma sociedade na qual todos os livros eram queimados. Esses dois exemplos mostram como o debate tem sido distorcido para evitar aquele que é o verdadeiro problema tanto do Queermuseu quanto de La Bête.

O que está ocorrendo é a demonização de qualquer um que se oponha ao Queermuseu ou a La Bête

Como já tivemos a oportunidade de explicar, nada do que tem ocorrido nos casos em tela nos faz pensar em censura. A população que se mobilizou contra o Queermuseu, por exemplo, não solicitou ao Estado que, por via de decisão judicial, mandasse fechar a exposição; em vez disso, recorreu ao boicote contra o banco cujo espaço cultural abrigava a mostra. A repercussão negativa, os danos à imagem do banco e a perspectiva da perda massiva de clientes fez o Santander decidir, livremente, pelo encerramento da mostra antes do prazo previsto. Custa acreditar que artistas que sentiram na pele, durante a ditadura militar, o que foi a verdadeira censura, com o poder estatal vetando a divulgação de suas obras, quando não forçando-os ao exílio, classifiquem como “censura” a postura das pessoas que se indignaram com a exposição.

Mas a maior e mais evidente distorção no debate sobre La Bête e o Queermuseu está na tentativa de descrever a indignação popular como sendo motivada pela exibição da nudez humana ou do ato sexual. Não nos cabe, aqui, entrar na questão específica do valor artístico de obras com este conteúdo; importa é dizer que a questão não é essa: a grande onda de indignação popular se dirigiu contra o fato de crianças estarem sendo expostas aos conteúdos artísticos.

O próprio projeto do Queermuseu, elaborado para a captação de recursos pela Lei Rouanet, demonstrava uma intenção deliberada de promover a visitação infantil. Nessa época em que até professores universitários são obrigados a colocar, nas ementas de seus cursos, avisos de que certos conteúdos podem ferir sensibilidades, não havia nenhuma classificação etária ou aviso – pelo contrário: parte do material impresso era destinado especialmente para “distribuição aos professores que acompanharem os alunos na visita de escolas”, por meio de um “Caderno do Professor”. A descrição dos objetivos afirma que “pretende-se com o resultado aproximar o público escolar das diversas linguagens da arte contemporânea e seus autores”. Além disso, 10% da tiragem total dos catálogos da exposição foi enviada a bibliotecas de escolas públicas que tivessem levado seus estudantes ao Queermuseu.

No caso do MAM, por outro lado, havia indicação etária; a responsabilidade, aqui, recai principalmente sobre a mãe que acreditou não haver problema nenhum em levar sua filha para tocar um estranho nu, mas não se pode esquecer a omissão dos responsáveis pela mostra, que permitiram esse tipo de situação. O próprio artista, por que não?, poderia ter interrompido a performance para ressaltar a inconveniência da interação com a criança, já que havia razão suficiente para tal; no entanto, a julgar pela imagem de Salvador, em que Schwartz aparece sorridente, em pé, também totalmente nu, de mãos dadas com quatro meninas, parece difícil que ele veja algo de errado nisso.

Quem tenta fazer crer que o problema, para as pessoas indignadas, era a nudez ignora completamente que o que está em jogo aqui é a preservação da infância. A própria Associação Médica Brasileira veio a público fazer um alerta sobre La Bête , afirmando que a performance não era “adequada”, que “situações de nudez, contato físico e intimidade com o corpo são próprias do desenvolvimento humano” desde que em determinadas circunstâncias bem específicas, e que pais e educadores cuidem especialmente da educação sexual de suas crianças para poupá-las “de situações inadequadas, as quais podem ter repercussões imprevisíveis, dependendo da vulnerabilidade emocional de cada criança ou púbere, mais até do que da intensidade da experiência”.

E, como consequência natural da distorção do debate – que inclui também, é claro, a atitude de quem não quer debater nada para não acabar forçado a admitir o absurdo –, o que está ocorrendo é a demonização de qualquer um que se oponha ao Queermuseu ou a La Bête, equiparado aos já citados queimadores de livros de Fahrenheit 451 ou até mesmo aos nazistas que condenavam a “arte degenerada”. O desprezo que certa classe artística e formadora de opinião devota a quem não aplaude essas manifestações artísticas se materializou no olhar fulminante de uma atriz que, em um programa televisivo, teve de ouvir a crítica perfeitamente razoável de uma senhora que condenou o fato de uma criança ter sido levada para tocar um estranho nu, com a genitália à mostra. O próprio diálogo entre as duas evidencia o que temos descrito aqui: a atriz evitou o tema real, preferindo criticar o “ambiente de ódio nas redes sociais” e dizendo ser “terrível que o nu choque o brasileiro”, como se o problema fosse a nudez, ao que a integrante da plateia reagiu imediatamente, lembrando que o problema não era o nu em si, mas a presença da criança.

Uma intelectualidade que considera inaceitável ou retrógrado que a sociedade se mobilize em defesa de suas crianças perdeu completamente o bom senso. Quando essa classe se organiza em campanha para a demonização de quem questiona esse ataque à infância, é preciso perguntar quem é o verdadeiro autoritário, quem está tentando calar quem – não pela via estatal, mas pela desmoralização, sutil ou escancarada.

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