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“O povo tem de voltar a trabalhar. Quem não quiser trabalhar que fique em casa”, afirmou, acrescentando um palavrão, o presidente Jair Bolsonaro dias atrás no “cercadinho” do Palácio da Alvorada. Para conseguir que isso aconteça, Bolsonaro tem acrescentado diversos tipos de negócio à lista das “atividades essenciais” definidas por decreto. No mais recente deles, academias, salões de beleza e barbeiros foram incluídos no rol, surpreendendo até mesmo o ministro da Saúde, Nelson Teich, que, no meio de uma entrevista coletiva, admitiu não ter conhecimento do texto que acabava de ser publicado.

O presidente está completamente convencido de que a reabertura dos negócios é um imperativo para impedir que a crise, já devastadora, causada pela pandemia do coronavírus não se transforme em convulsão social. Há números e previsões suficientes para defender esta posição. O arcabouço de proteção de empregos e renda criado pela equipe econômica, e que já custará muitas centenas de bilhões de reais ao governo, foi desenhado para durar até julho, enquanto uma nota técnica do Ministério da Economia afirma que cada semana de quarentena tem impacto de R$ 20 bilhões no PIB. Em abril, houve 748,5 mil novas solicitações de seguro-desemprego, 22% a mais que em abril de 2019, e o governo acredita que ainda pode haver subnotificação considerável, da ordem de 250 mil pedidos, devido ao fato de não ser possível fazer a solicitação presencialmente, apenas pela internet.

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A decisão sobre que atividades podem funcionar ou devem permanecer fechadas é o exemplo perfeito de deliberação que é melhor tomada no âmbito local

Mas o que Bolsonaro pretende conseguir com sucessivos decretos que ampliam a lista de “atividades essenciais”? Os efeitos práticos, a bem da verdade, são bastante limitados. Há uma única consequência mais simbólica, a banalização do conceito de “essencial”; para além disso, os decretos federais sobre esse assunto ficaram totalmente desprovidos de força após a decisão do Supremo Tribunal Federal que deu a estados e municípios “competência concorrente” para assuntos relacionados à saúde pública.

Por mais que o resultado daquele julgamento venha sendo lido por alguns gestores como carta branca para ações extremas que restringem até mesmo liberdades básicas como o direito de ir e vir – a exemplo dos toques de recolher decretados em algumas localidades –, o que é bastante questionável, a decisão sobre que atividades podem funcionar ou devem permanecer fechadas é o exemplo perfeito de deliberação que é melhor tomada no âmbito local e que concretizaria o “mais Brasil, menos Brasília” que foi um dos motes de campanha de Bolsonaro. Tanto é assim que alguns estados e vários municípios já haviam liberado o funcionamento de academias, salões de beleza e barbeiros antes mesmo do decreto presidencial, após avaliar que os riscos de contaminação eram baixos se tomadas as devidas precauções. Enquanto isso, outros prefeitos e governadores mantiveram esses estabelecimentos fechados mesmo depois da publicação do decreto, também usando das prerrogativas dadas pelo STF e apoiando-se em avaliações das autoridades sanitárias.

Seria ingenuidade afirmar que Bolsonaro desconhece o poder quase nulo desse tipo de decreto, o que nos permite concluir que eles continuam sendo publicados com a mera intenção de marcar posição no embate que o presidente trava contra vários governadores e prefeitos. O objetivo é apenas eximir-se de responsabilidade por mais quebradeira e desemprego. Se cabeleireiros, manicures, barbeiros, instrutores de academia e personal trainers não podem trabalhar, a culpa é dos prefeitos e governadores; eles é que precisam ser cobrados, já que o presidente não tem nada com isso, pois liberou a atividade – é este o raciocínio implícito.

Ao alimentar disputas com governadores e prefeitos – ainda por cima, insinuando que a recusa em liberar a abertura de certos estabelecimentos consistiria em “autoritarismo” e “afronta ao Estado Democrático de Direito” –, Bolsonaro apenas desperdiça tempo precioso, enquanto o país segue acumulando novos casos e mortes. Sim, é verdade que também há em governos e prefeituras políticos dispostos a usar politicamente o embate sobre a reabertura dos negócios, mas ao presidente caberia colocar-se acima das picuinhas e exercer um extremamente necessário papel de coordenação. Fala-se tanto em preservar vidas e empregos, mas o fato é que estamos perdendo ambos em ritmo preocupante porque a prioridade parece ser apenas a reafirmação do próprio poder.

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