Agente de trânsito orienta motorista em São Luís sobre restrição na circulação por causa da pandemia do coronavírus: justiça decretou lockdown na capital maranhense.| Foto: Biné Morais/Agência São Luis/Fotos Públicas

A luta política envolvendo as medidas de distanciamento social tem colocado o país num impasse que falsamente opõe a preservação da vida ao respeito aos ditames da lei. Enquanto as restrições se resumiam à proibição de funcionamento de parques públicos, shoppings, praças e os chamados serviços não essenciais, a sociedade viveu as consequências dessa crise institucional sem grandes protestos. Agora, com quatro estados (Maranhão, Pará, Ceará e Pernambuco) e várias cidades impondo medidas severas de circulação de pessoas, o chamado lockdown, começa a crescer a desconfiança sobre os limites para essa atuação. Até onde, afinal, o Estado pode ir?

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No Brasil, aos problemas de saúde pública provocados pelo coronavírus logo se somaram outros, de ordem política e, posteriormente, institucional. A briga entre o presidente, governadores e prefeitos produziu impasses e precipitou decisões. No fim de março, em resposta a uma ação perpetrada pelo PDT contra uma medida provisória do governo federal, o ministro Marco Aurélio Mello, do STF, decidiu que estados e municípios têm poderes para restringir a locomoção de pessoas, incluindo medidas de validade temporária sobre isolamento, quarentena e restrição de locomoção por rodovias, portos e aeroportos.

Marco Aurélio parece ter se baseado em uma tese jurídica pouco ortodoxa: a de que, nos casos de competência legislativa concorrente, a competência administrativa seria comum. Essa volta hermenêutica foi recebida com alívio por muita gente preocupada com o avanço da pandemia em face do posicionamento do presidente, mas também provocou um curto-circuito institucional que logo faria sentir suas consequências.

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Fortalecidos por uma súbita cessão de novos poderes, vários governadores e prefeitos se destacaram por um gradualismo tosco

Isso porque a Constituição reserva espaço para medidas de exceção que violam temporariamente certos (mas não todos) direitos fundamentais dos cidadãos, em nome de um bem maior. É o que acontece no estado de sítio, previsto no artigo 137, o único que permite restrição ao direito de ir e vir. Foi um dispositivo pensado como caso limítrofe, com centralização do poder para evitar a desordem, limite de vigência e controle parlamentar, entre outros freios e contrapesos.

No entanto, a decisão do STF transferiu essa prerrogativa de exceção para governadores e prefeitos. Fortalecidos por uma súbita cessão de novos poderes, vários deles se destacaram por um gradualismo tosco. Em que pese o esforço comum em aumentar leitos de hospitais e equipes médicas, medidas preventivas sem grandes custos sociais foram adotadas muito tardiamente, enquanto as favelas e periferias das grandes cidades permaneciam (e ainda permanecem), em sua grande maioria, sem qualquer alteração em termos de isolamento social. Essas localidades superpopulosas, marcadas pela pobreza, informalidade, ocupação desordenada do território, alta densidade demográfica, insalubridade e insegurança certamente puxaram os índices de distanciamento social para baixo.

Ainda assim, na primeira quinzena de maio, quatro estados emitiram medidas de lockdown e várias cidades instituíram toques de recolher. Estaremos diante de um exagero? A resposta só pode ser encontrada aplicando-se o princípio da proporcionalidade, isto é, critérios racionais para evitar excessos em qualquer medida que restringe liberdades.

A proporcionalidade exige três crivos, dos quais o primeiro é o da adequação: as medidas consideradas permitem atingir o fim almejado? E as experiências de outros países indicam que sim, a restrição da mobilidade parece reduzir a curva de contágio. Obviamente é impossível chegar à “contaminação zero”, já que muitas pessoas precisam sair de casa para compras ou outras atividades essenciais, enquanto outras continuam trabalhando, mas ainda assim o ritmo de contágio é muito menor com as ruas vazias.

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Vencido o critério da adequação, vem o da necessidade: não existiria outro modo, menos drástico, de alcançar o mesmo objetivo? É aqui que a controvérsia se torna mais forte. Ao que tudo indica, é difícil acreditar que os entes responsáveis pelas medidas restritivas tenham esgotado todos os recursos à disposição antes de cercear ainda mais direitos. A desigualdade na provisão de leitos de UTI é gritante. Tampouco se viu esforço real de implementação de políticas de testagem em massa para auferir o gradualismo e a eficácia das medidas. Em muitos locais, não houve o isolamento de praças e espaços públicos, ou qualquer esforço de regulação da circulação em feiras livres e mercados populares. As favelas e bairros de subúrbios não foram fiscalizadas intensamente. Não se pensou em horários alternativos para atividades comerciais a fim de evitar fluxo intenso. Nesses casos, é forçoso questionar se o lockdown realmente atende ao princípio da necessidade.

E, mesmo nos casos em que todas as medidas menos restritivas tivessem sido tentadas, sem sucesso, ou que algumas delas se mostrassem impraticáveis, restaria o critério da proporcionalidade em sentido estrito: as vantagens trazidas pelas restrições superam quaisquer desvantagens que elas provocam? O bem que está em jogo no lockdown é evidente: as restrições têm por objetivo garantir a saúde das pessoas. Mas o que se perde em nome desse bem?

A expansão desordenada do controle estatal produz externalidades como o aumento da corrupção, a disseminação da mentira, o abuso de autoridade, a extorsão, o denuncismo e a desconfiança

A crise econômica precipitada pelas medidas restritivas pode ser pensada no seu aspecto meramente materialista. Nesse sentido, por óbvio, empregos se recuperam, mas vidas humanas não. Mas o debate não pode ser colocado de maneira simplista. A associação entre altos índices de desemprego e aumento da violência é apontada em vários estudos científicos. Uma crise sem precedentes implica necessariamente menos dinheiro para a saúde pública e o aumento de doenças relacionadas à pobreza.

Além disso, em muitos estados, o controle da circulação de cidadãos mediante exigência de apresentação de comprovante de residência deve gerar vários problemas, dada a impossibilidade que pessoas mais pobres têm de dispor de documentos dessa natureza. A expansão desordenada do controle estatal produz externalidades como o aumento da corrupção, a disseminação da mentira, o abuso de autoridade, a extorsão, o denuncismo e a desconfiança.

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A situação inusitada que uniu uma pandemia internacional, uma briga de competência entre os entes federados e uma decisão do STF que embaralhou completamente as regras que regiam o ordenamento jurídico brasileiro trouxe a necessidade de retorno a princípios para julgar os casos particulares. Pode até ser possível que um lockdown possa se justificar em determinado caso particular, mas a avaliação segundo o crivo triplo da proporcionalidade para cada circunstância se faz necessária para um julgamento correto. Com a Constituição e as liberdades na UTI, resgatar este princípio pode ser o único remédio para evitar um desfecho trágico.